|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O HUMANISMO IMPOSSÍVEL DE GEORGE STEINER
ENTREVISTAS REUNIDAS EM "GEORGE STEINER À LUZ DE SI MESMO", QUE ESTÁ SAINDO NO BRASIL, DESTACAM OS INTERESSES MÚLTIPLOS DO CRÍTICO FRANCO-AMERICANO, MAS APONTAM SUA INCAPACIDADE EM DESENVOLVÊ-LOS
por Peter Burke
George Steiner é um fenômeno. Ele diz falar três idiomas
como um nativo -inglês, francês e alemão. Durante a
maior parte de sua vida profissional, ensinou literatura
comparada (desde 1974, na Universidade de Genebra),
mas também escreveu sobre filosofia, linguística e história intelectual e publicou contos (um deles, imaginando Hitler na América Latina, foi produzido como uma peça teatral, "The Portage
to San Cristibal of A.H."). Para um acadêmico que trabalha com
as ciência humanas, ele também é formidavelmente bem informado sobre as ciências naturais; quando era estudante, certa vez
fez uma matéria de física na Universidade de Chicago com o professor Enrico Fermi.
Steiner é também um homem de muitas inconsistências aparentes. Ele irradia uma extraordinária autoconfiança, um senso
de superioridade a seus colegas, mas também é às vezes virtualmente paranóico, afirmando não apenas ser marginal à vida acadêmica ortodoxa, mas também de ter sido deliberadamente
"marginalizado" por seus colegas. Queixa-se de seu isolamento,
ao mesmo tempo em que faz palestras em muitos lugares do
mundo. Sente que não foi reconhecido, apesar dos cargos de
prestígio que teve em Princeton, Oxford e Genebra, e continua
membro do Churchill College de Cambridge, com seu retrato
pendurado na National Portrait Gallery, o Panteão inglês.
Fascinado por filologia, enfatizando a importância da
leitura minuciosa, prestando atenção na gramática bem
como no vocabulário de textos literários e se gabando
de ser trilíngue, Steiner dedicou seu primeiro livro,
"Tolstói ou Dostoiésvki?" (1959), a dois autores em uma
língua que ele admite ser incapaz de ler. Ele despreza a
escrita de comentários sobre os clássicos, em vez da leitura dos próprios clássicos, mas dedica a maior parte da
vida a escrever tais comentários. Afirma que a desconstrução é um "niilismo pretensioso", mas fala de Jacques
Derrida com aparente respeito. Dispensa a teoria nas
ciências humanas, mas demonstra admiração por
Freud, Jakobson e Lévi-Strauss.
Amores e ódios
Algumas pistas para desvendar esse enigma, ou essa série de enigmas, aparecem na autobiografia de Steiner, publicada em 1997 sob o título "Errata - Uma Vida Examinada". Há mais pistas a serem
descobertas em uma série de entrevistas conduzidas pelo filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, publicadas primeiro em francês e agora traduzidas para o português
["George Steiner à Luz de Si Mesmo", editora Perspectiva]. Nessas entrevistas, Steiner responde a perguntas
sobre seu desenvolvimento intelectual e suas opiniões
sobre música, religião, judeus, o Holocausto, política,
linguagem e literatura.
Os dois livros se sobrepõem em muitos pontos, mas
um complementa o outro. Entre os dois, pinta-se um
retrato vívido de um homem de fortes amores e ódios,
de um intelectual que gosta de chocar as pessoas, de um
feroz individualista ("Se jamais eu estiver de acordo
com alguém, enquanto me encontrar no mesmo recinto que essa pessoa, eu me chamarei imediatamente de
um imbecil"). Steiner também se autodescreve como
um homem apaixonado por poesia (a de Paul Celan,
por exemplo, autor do inesquecível "Fuga da Morte"),
música (especialmente de Beethoven a Boulez ou além)
e filosofia (de Espinosa a Heidegger).
Steiner dá a impressão de ser um homem que passa
todo o tempo em que está acordado imerso em alta cultura e que se mantém distante da cultura popular ou comum, apesar de admitir a Jahanbegloo que vai ao cinema (preferindo filmes feitos antes de 1939) e que pelo
menos ocasionalmente assiste televisão.
O texto oferecido agora aos leitores brasileiros é uma
tradução do francês das entrevistas dadas em Cambridge, sejam em francês ou em inglês, não nos é dito, e gravadas em fita cassete, de acordo com uma nota preambular, "por Ramin Jehanbegloo, a quem George Steiner
confiou também a redação definitiva das suas palavras". "Definitiva" certamente não é a palavra a ser usada a respeito deste texto. Erros graves foram cometidos,
seja no estágio da transcrição, da edição ou da tradução.
Por exemplo, a tradução da palavra inglesa "college"
por "faculdade" torna incompreensível a descrição de
Steiner de Oxford e Cambridge. Richard McKeon é dificilmente reconhecível como "McKiern", enquanto
"odium theologicum" torna-se "audium".
Em alguns casos, a dedução mais caridosa a ser feita é
de que o som da fita estava baixo -mas, então, por que
não consultar o próprio Steiner? É algo surpreendente
ouvi-lo dizer que, entre o século 6º e o Renascimento,
"apenas os grandes mestres suíços liam Horácio, Cícero, Tito Lívio e Plauto". Que mestres suíços? Steiner poderia talvez estar falando sobre monastérios? Esse texto
corrupto é uma forma bizarra de homenagem a um homem que se preocupa tanto com as palavras.
Passemos do texto para o conteúdo das entrevistas e
para o homem que as concedeu. Uma entrevista é um
tipo especial de gênero de discurso que incentiva uma
auto-apresentação dramática. Jorge Luis Borges gostava de provocar os entrevistadores dizendo algo escandaloso. Em uma determinada entrevista, transmitida
na rádio inglesa, ele afirmou que a tradução inglesa dos
poemas de são João da Cruz (1542-1591) é superior ao
original (ainda posso ouvir o murmúrio de espanto do
entrevistador).
Steiner é admirador de Borges, e eu não pude deixar
de pensar nisso quando ele disse a Jehanbegloo que o
Otelo de Verdi é melhor do que o de Shakespeare. A situação de entrevista também incentiva declarações
grandiosas sobre o estado do mundo. Nesse caso, Steiner passa facilmente para o modo denunciador. "A
sombra da americanização do mundo inteiro me persegue", observa; "a fragmentação dos conhecimentos humanos se torna horrenda" e assim por diante. A linguagem dramática faz imaginar que Steiner está provando
o manto de um profeta do Antigo Testamento.
Xadrez e ciências naturais
Menos diretamente,
Steiner se apresenta como o último dos polímatas, e é
verdade que, se essa espécie intelectual não está extinta,
um bom lugar para procurar por um espécime é o
Churchill College de Cambridge. Steiner lê pelo menos
sete idiomas com facilidade e suas publicações incluem
trabalhos de crítica literária tais como "A Morte da Tragédia" (1961), ficção, estudos sobre idioma e tradução
tais como "Depois de Babel" (1975), trabalhos filosófico-religiosos tais como "Presenças Reais" (1989) e até
mesmo um relatório sobre um torneio de xadrez, "Cavalos de Reykjavík" (1973). Nesses diferentes livros, o
autor frequentemente faz referências às ciências naturais, da astrofísica à etologia: uma famosa dissertação
sobre a linguagem começa com os sistemas de sinalização usados por abelhas e golfinhos.
Não é de estranhar, portanto, que alguns de seus colegas acadêmicos tenham descrito seu trabalho como
uma forma de jornalismo, criticando-o por popularização, simplificação e superficialidade (ele foi obviamente
um jornalista no sentido literal de escrever artigos sobre
questões intelectuais para publicações tais como "Encounter" e "New Yorker"). Steiner se defendeu com um
contra-ataque, fazendo críticas ferrenhas à especialização, por exemplo, ao que ele denomina "esse mundo fechado da técnica filosófica contemporânea". Ele diz a
seus críticos que apenas vacas têm "campos" e reclama
que o termo "polímata" tornou-se um "escárnio", que
não é mais aceitável "para nenhum indivíduo publicar
sobre a literatura da Grécia Antiga e sobre xadrez, sobre
filosofia e o romance russo, sobre linguística e estética".
Como um humanista do Renascimento, ele proclama
que nada humano é estranho para ele. Nesse aspecto,
Steiner não se diferencia de Edward Said, um outro estudioso que gosta de se descrever como um humanista,
outro nômade que se diz deslocado em todo lugar, outro admirador do crítico filologista Erich Auerbach e
outro crítico literário que vai muito além da literatura
para escrever sobre música, filosofia e política.
Pode ser iluminador tentar olhar além do conflito de
personalidades e estilos de academicismo que cerca a
obra de Steiner e enxergar o que pode ser chamado de
problemas estruturais. À medida que o número de pesquisadores, equipes de pesquisa e jornais especializados
se multiplicou, tornou-se cada vez menos possível para
qualquer indivíduo dominar um único "campo", quanto mais aprendê-lo como um todo (e o aprendizado
acadêmico em si é apenas um tipo de conhecimento).
Provavelmente não seja coincidência o fato de que o
último polímata, no sentido forte do termo, um estudioso que fez contribuições importantes e originais a
um número amplamente variado de campos de estudos
diferentes, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) -filósofo, matemático, linguista, sinólogo e administrador
do conhecimento-, tenha vivido na época em que os
primeiros jornais acadêmicos foram fundados, em Paris, Londres, Amsterdã, Roma e Leipzig.
Mesmo assim, poucos estudiosos do século 20 podem
ser descritos como polímatas, no sentido fraco do termo, familiarizados com o aprendizado em diversos
campos e trabalhando nas fronteiras entre as disciplinas. Eles incluem o crítico Erich Auerbach, que escreveu sobre literatura ocidental de Homero a Virginia
Woolf, e o escritor Aldous Huxley, que teria lido a
"Encyclopaedia Britannica" de ponta a ponta e certamente mostrava ter conhecimento de um amplo leque
de assuntos, da história da França do século 17 a drogas
alucinógenas e música renascentista.
Steiner é certamente um polímata no sentido fraco do
termo, o que, no ano de 2003, se tornou uma façanha
considerável. O problema dele é que parece acreditar
ser um polímata no sentido forte também. Que ele tenha escrito sobre literatura russa sem ser um eslavista
profissional é algo admirável; que o tenha feito sem ter
aprendido russo é preocupante, para dizer o mínimo.
Como o rabino Ben Ezra, de Robert Browning, a ambição de Steiner excedeu o seu alcance, e ele pagou um
preço por isso. Nunca desenvolveu seus melhores insights e abordagens, as idéias sobre entendimento como tradução à margem de estudos literários, linguísticos e filosóficos, nas quais estava trabalhando no final
dos anos 60 e início dos anos 70. Steiner nos deu um brilhante esboço breve dos problemas, e depois passou para outra coisa em vez de adicionar análises detalhadas
ou closes da visão geral original. Por exemplo, os parágrafos que dedicou ao poeta Johan Hölderlin e suas traduções do grego poderiam ter sido desenvolvidos em
um capítulo ou até mesmo em uma monografia. Se tivesse continuado a trabalhar no que hoje é conhecido
como "estudos de tradução", poderia muito bem ter escrito um grande livro, e sua reputação entre acadêmicos
seria mais alta. Mas, ao mesmo tempo, se tivesse permanecido com um único tema durante duas ou três décadas, não teria sido George Steiner.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Leslie Benzakein.
Texto Anterior: O trabalho do alfaiate Próximo Texto: As insatisfações de Harold Bloom Índice
|