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O fim da cultura de diversão
Robert Kurz
Sacrificar-se no altar da economia empresarial era considerado uma forma da originalidade dos indivíduos flexíveis
Quando as condições sociais se
alteram, as seguem mais cedo
ou mais tarde também as
idéias. Essa constatação essencial da teoria crítica não se refere de modo algum apenas a uma mudança para
melhor. No desenvolvimento capitalista,
pode-se observar repetidas vezes o fenômeno de que também as idéias se deterioram junto com as condições. Na prosperidade, a filantropia encontra uma
conjuntura favorável; as pessoas se desmancham em esperanças e utopias felizes de "desenvolvimento", de libertação,
de elevação do gênero humano e assim
por diante, mas sem colocar em questão
a forma social subjacente. Mesmo porque esta é justamente a forma da prosperidade. Quem comeu bem e está saciado
não pode outra coisa que pensar com
otimismo e expor à luz do dia um bem-querer universal.
Na crise, por sua vez, a perspectiva se
modifica a fundo. Quem come mal ou
está ameaçado de ter de comer mal no
futuro ou mesmo de permanecer faminto deixa para trás o bem-querer e o otimismo. Mas exatamente nesse caso a
forma social subjacente é ainda menos
colocada em questão, embora seja então
a forma da crise.
Em vez disso, são as ideologias do pessimismo, da misantropia e da descrença
que encontram uma conjuntura favorável. Pode-se dizer isso também da seguinte maneira: quando se desce ladeira
abaixo, a máscara cai, e a brutalidade
sem disfarce da lógica dominante e do
seu terror econômico vem à tona. Essa
mudança para pior aparece nos enunciados da política tanto quanto no discurso
das mídias, nas diretivas institucionais e
na "filosofia" do "management".
Sacrifícios humanos
Da mesma
maneira que a economia de mercado
rompe manifestamente sua promessa de
bem-estar, as estruturas de sua ordem e
suas coerções irracionais não são convertidas em tema da crítica; longe disso,
discute-se a necessidade de sacrifícios
humanos. No lugar de falsas idéias de felicidade, de progresso e de bem-estar geral, entram idéias de sacrifício. Então a
crise social é considerada uma catástrofe
natural, à qual só se pode reagir da mesma maneira que a um terremoto: com
medidas emergenciais, sem poder evitar
as causas.
É um herói quem ajuda com vigor e coragem, mas não para quebrar as falsas
coerções e chegar a um emprego mais racional dos recursos, e sim para executar,
bem na hora da crise, essas coerções em
si mesmo e nos outros com tanto mais
impiedade. E, como é constante na modernidade, o etos arcaico do sacrifício e
do auto-sacrifício se esconde atrás da
máscara da objetividade.
Capitalismo "solto"
Nos anos 90
houve uma peculiar desproporção entre
a deterioração econômica, de um lado, e
a evolução ideológica, de outro. Justamente na crise as idéias de otimismo encontravam uma conjuntura favorável.
Da deterioração real quase se iria extrair
a emancipação universal. Nem a coerção
burocrática intensificada nem a crítica
social estavam na ordem do dia, mas sim
a total "auto-responsabilidade" na crise.
Indivíduos puramente autônomos deveriam, cada um por si só, dar conta de todos os problemas de modo jovial, dócil,
alegre, livre e, sobretudo, "criativo".
A divisa das "reformas a favor da economia de mercado" rezava: o capitalismo deve antes de tudo ser ainda mais
"solto"; que os indivíduos e as instituições aprendessem a se ajeitar melhor
com isso. O homem foi propagandeado
como "empresário de si mesmo".
Os conceitos de emancipação, de liberdade, de auto-responsabilidade e de reforma foram redefinidos e investidos semanticamente de forma nova, no sentido de um liberalismo econômico "hardcore". Não era a velha e nova pobreza
que deveria ser abolida, era a relação dos
pobres com sua pobreza que precisava se
alterar. O imperativo rezava: relacionai-vos "positivamente" com as condições
que o mercado anônimo vos dá.
A todos foi concedida ou colocada em
perspectiva a permissão de administrar
por si mesmos a própria miséria sem nenhuma burocracia. O novíssimo "homem novo" no novíssimo "Admirável
Mundo Novo" do século 21 foi pensado
como um ser que pensa e sonha economicamente 24 horas por dia, se valoriza
ininterruptamente e considera todas as
relações, até as pessoais e íntimas, como
"relações de freguesia".
Também à burocracia estatal restante
foi colocada a tarefa de não só "emagrecer" cada vez mais, mas também de demonstrar "proximidade com o cidadão".
Tanto quanto a ferrovia, o abastecimento comunal de água, os hospitais ou as
bibliotecas, a administração não deveria
mais se considerar infra-estrutura pública, devendo agir, pelo contrário, na qualidade de uma empresa de mercado dedicada à indústria de serviços.
Nos funcionários foi inculcado, por
meio de cursos extras, que eles tinham de
tratar sua clientela como "fregueses" e
treinar um sorriso profissional de vendedor. A queda dos custos deveria ser vinculada a mais eficiência, a administração
burocrática das vidas humanas, redefinida em uma espécie de negócio do "aconselhamento", a fim de aplainar para os
clientes o caminho rumo à gloriosa auto-responsabilidade, devolvendo-os a uma
existência radiante como "empresários
de si mesmos", que no futuro se entregariam, sem nenhuma ajuda do Estado e
com toda a alegria, às exigências do mercado total.
Esse espírito do tempo não nasceu, como antigamente, nas ciências universitárias, na literatura ou nas mídias determinantes, mas sim nos caldeirões ideológicos das bruxas da assim chamada "cultura de empresa". No curso da guinada
neoliberal, a liderança espiritual passou
desde os anos 80 da intelligentsia acadêmica, literária e jornalística para os "intelectuais econômicos" do "management". Isso foi simplesmente lógico: se
todos os domínios da vida são "economicizados" da mesma maneira, então a
economia ascende à posição de "ciência-rainha", ocupando um lugar outrora reservado à teologia e depois à filosofia.
Cada método dominante do "management" se torna "cultura de ponta" da sociedade inteira e determina as conjunturas da moda intelectual. As empresas já
não aparecem mais como recintos banais da produção de mercadorias; elas
são carregadas com uma "significação"
universal.
Na "filosofia" do "management", o estranho espírito do tempo dos anos 90 se
expressa como nova coerção para a ausência de coerção. O trabalho foi redefinido como tempo livre, e, o tempo livre,
como trabalho.
No lugar das estruturas tradicionais da
autoridade deveriam entrar as "hierarquias planas"; o chefe anguloso e temido
de outrora foi substituído pelos "teams"
suspensos no ar.
"Revolta da diversão"
A formalidade distanciada do mundo alienado do
trabalho deu lugar a um tom familiar,
sem distância; todos diziam "você" entre
si, da faxineira ao designer "criativo", do
office-boy ao investidor cheio de bilhões.
O que, na qualidade de uma "revolta da
diversão", criou toda uma cultura da juventude -e vociferou em orgias de bobajadas pretensiosas ou na cultura desavergonhada da "trash culture" por meio
das mídias- tinha sua origem no design
social da gestão capitalista de seres humanos por meio dos novos métodos do
"management". Mas o divertimento foi
desde o início consideravelmente convulsivo e mentiroso.
Tratava-se na realidade apenas de mascarar no nível semântico a dureza, para
muitos já perceptível, da crise e a exacerbação da concorrência. O postulado lisonjeiro da "auto-responsabilidade" implicava configurar a coerção ao rendimento permanentemente intensificado
para além do humanamente possível como auto-exploração voluntária. O propagado valor do trabalho como tempo livre deveria fazer os ocupados espremerem a si mesmos como laranjas por meio
de um número enorme de horas extras
não pagas. Sacrificar-se no altar da economia empresarial era considerado uma
forma da originalidade dos indivíduos
flexíveis, "soberanos", que na firma, após uma dia de trabalho no regime do
capitalismo antigo, jogam animadamente futebol de botão, refletindo se não deveriam colocar mais algumas horinhas
ali, já que era tão legal.
O notório otimismo na crise foi, portanto, apenas uma variante paradoxal da
velha ideologia do sacrifício própria das
crises; só que deveria se tratar de "vítimas felizes", que vivenciam sua própria
degradação social como uma farra tremenda na "sociedade da diversão" e se
tomam por "rebeldes", quando eles já
não aguentam mais.
E o imperativo da concorrência total
era considerado mais assimilável em
uma atmosfera de falsa igualdade, em
que, como num comercial alemão dos
anos 90, o chefe de barba rala de uma firma de internet se põe de pé para trazer
café e fast food "a todos", a fim de que
eles não precisem interromper sua lida.
De modo geral, a assim chamada nova
economia dos negócios da internet, na
época ainda esperançosos, formava o pano de fundo de todas essas novas concepções. A crise era compatível com o
culto do otimismo somente porque ela,
em determinados setores aclamados como "setores econômicos de ponta", pôde ser aparentemente compensada por
uma grotesca economia de bolhas financeiras. Empobrecimento e degradação
social vão de par com a chance da "riqueza rápida" para muitos. Por isso, apesar
da crise, os aventureiros definiram o espírito do tempo. Nesse clima pôde surgir
o imperativo paradoxal de vivenciar o
declínio como "chance" e a heteronomia
como autodeterminação. Com a promessa resplandecente do boom ligado às
bolhas financeiras ante os olhos, cada
um quis se sentir protegido no desabrigo
e enxergar cordialidade na hostilidade
da concorrência.
Porém, desde que nos países ocidentais, após o ocaso da nova economia, as
ilusões estouraram junto com as bolhas
financeiras, o tom do espírito do tempo
se transformou com efeitos duradouros.
De repente se descobre que a nova economia e todas as idéias conectadas com
ela não eram mais que uma miragem.
Mas o resultado não é de modo algum a
renovação da crítica social. Em vez disso,
apenas foi tirada a maquiagem do falso
otimismo. A idéia de "auto-responsabilidade" murcha e dá lugar ao reconhecimento de que a realidade nos grupos empresariais e na administração estatal
nunca havia concordado com ela. O espírito do tempo dos anos 90 foi somente
o comportamento lúdico pós-moderno
em um setor realmente insignificante e
nada sério em termos econômicos, que
havia se estilizado em alto nível como
"revolução cultural". Agora vêm de
qualquer de jeito as idéias de sacrifício
sem nenhuma máscara emancipadora.
Nas empresas, o ancien régime da ditadura gerencial volta orgulhoso a ostentar
sua bandeira sob o signo do medo, o qual
nunca havia realmente desaparecido.
E é natural que essa mudança do pensamento se mostre em primeiro lugar ali
onde o paradigma efêmero dos novos
"conceitos anti-autoritários" havia tomado o seu ponto de partida: na "filosofia" do "management".
Trabalho sob tutela
A empresária e
publicista alemã Judith Mair escreveu
um livro com o significativo título de
"Fim de Brincadeira". Nele ela ajusta as
contas com a "cultura da diversão" e
com as formas de tratamento anti-autoritárias da curta era da nova economia.
Sua idéia central: "Trabalho não dá prazer, precisa ser forçado". Isso Marx já sabia quando falou a respeito da alienação
no trabalho, provocada pela heteronomia da produção.
Judith Mair, é claro, não quer abolir a
heteronomia, mas colocar de novo o
"trabalho" sob tutela para o fim em si
mesmo da valorização. A bela aparência
da "auto-responsabilidade" desaparece;
a reierarquização e o disciplinamento
autoritário são anunciados.
Mas não é mais que um fato: dificilmente alguém está pronto por livre vontade a consumir sua vida até não sobrar
nada para fins que lhe são estranhos e sobre os quais ele não tem nenhum controle. Pouquíssimos homens estão prontos
a se sacrificar alegremente na crise. O velho sonho do monstruoso utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), de que todo
indivíduo se deixaria "pedagogizar" até
se converter em seu próprio vigia e capataz é irrealizável, mesmo que esse sonho
tenha parecido quase se tornar realidade
nas concepções da nova economia.
Que essas concepções não podem ter
êxito era o que sabia de todo jeito o liberalismo tradicional da "velha economia", que por origem era ao mesmo
tempo conservador e autoritário. No antigo capitalismo liberal aplicava-se a divisa: "Liberdade para o dinheiro, coerção
para o material humano". Liberdade
econômica e Estado autoritário andavam por princípio de mãos dadas; liberalismo sempre rimou com Pinochet.
Supérfluos e ocupados
Não só nas
empresas, mas mais ainda nas autoridades públicas do campo social dos países
ocidentais, o estado de espírito no começo do século 21 voltou a ser prussiano. Os
"supérfluos", multiplicando-se aos
montes, precisam ser disciplinados e forçados a aceitar seu destino de maneira
ainda mais dura que os "ocupados". Assim como no nascimento do capitalismo
a colonização interna e a externa se condicionavam mutuamente, agora o novo
colonialismo externo, ligado à crise, da
polícia ocidental do mundo, sob a liderança dos EUA, vira um colonialismo interno, também ligado à crise, da administração da pobreza.
O processo socioeconômico da individualização nos Estados ocidentais da indústria e da prestação de serviços não é
anulado por conta disso. Mas agora todos os "empresários de si mesmos" e os
aventureiros fracassados da autovalorização podem sentir que o anonimato das
coerções sistêmicas assume, na realidade
da crise, a face dos vigias e dos capatazes,
dos "oficiais e suboficiais do capital"
(Marx). O tom das casernas voltou: de
novo ouvimos berros, somos escarmentados, humilhados, insultados, tudo para
não esquecermos o que a maravilhosa
modernidade da economia de mercado é
segundo sua essência: uma relação de
coerção social.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor
de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.
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