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+ memória
AS VERSÕES DE UM MITO
Bicentenário de nascimento do duque
de Caxias é oportunidade para reconstruir a
figura do militar brasileiro à luz de seu tempo
Francisco Doratioto
especial para a Folha
O bicentenário do nascimento de
Luis Alves de Lima e Silva, o
duque de Caxias, transcorreu
em 25 de agosto. A data passou
praticamente despercebida no meio acadêmico, quando poderia ter sido motivo
para se debater a origem e o caráter do
Estado brasileiro no século 19. Afinal de
contas, a longa carreira militar de Caxias
confundiu-se com a história do Império
do Brasil. Em 1822, ano da Independência, Lima e Silva era tenente e, ao morrer,
em 1880, alcançou a patente militar máxima, era o único duque do Império e,
ainda, tinha feito carreira política no Partido Conservador, chegando a ser senador e a chefiar o governo em três ocasiões diferentes.
No fortalecimento do Estado monárquico, Caxias participou de quase todos
os conflitos armados, em defesa do projeto de centralização política e manutenção da integridade territorial do país. No
plano interno, participou da expulsão
das tropas do general Madeira, na Bahia
(1823); dominou as rebeliões regenciais
da Abrilada (1832) e da Balaiada (1840-41). Também venceu a revolta liberal de
São Paulo (1842) e, mediante o uso combinado da força e da negociação, obteve
o fim da Revolta da Farroupilha (1837-45), terminando com a secessão republicana do Rio Grande do Sul.
No plano externo, Caxias participou da
Guerra da Cisplatina (1825-28); comandou as forças brasileiras, aliadas às da
oposição argentina, federalista, contra o
caudilho uruguaio Manuel Oribe (1851) e
na deposição de Juan Manuel de Rosas,
ditador da Confederação Argentina. O
apogeu de sua carreira militar foi o comando das forças imperiais na Guerra
do Paraguai (1865-70), no decisivo período de 1866 a 1868.
Paradigma
No Paraguai, Caxias foi
comandante competente, embora não
isento de falhas, implementando estratégia e táticas que permitiram destruir o
Exército paraguaio na "dezembrada"
-batalhas de Itororó, Avaí e Lomas Valentinas, em dezembro de 1868- e ocupar Assunção, a capital inimiga. Das críticas que lhe foram dirigidas à época, algumas eram procedentes militarmente,
mas a maior parte delas decorria de erros
de avaliação dos autores ou, ainda, tinham motivação política.
A trajetória militar de Caxias levou o
Exército a adotá-lo, na década de 1920,
como o paradigma de comportamento a
ser seguido por soldados e oficiais.
Nas duas décadas seguintes, Getúlio
Vargas reforçou a identificação do Exército com o duque, posto que suas cararacterísticas de militar leal ao Estado e
defensor do centralismo político constituíam reforço ideológico ao projeto político varguista. Posteriormente, Caxias foi
elevado à condição de patrono do Exército, sobrepujando o general Osório, seu
contemporâneo que, por décadas, ombreara com ele no panteão dos heróis
militares brasileiros.
A historiografia escrita por autores militares desumanizou Caxias, ao apresentá-lo como soldado e cidadão sem falhas.
A artificialidade dessa imagem contribuiu para a pouca identificação com ela
por parte do cidadão comum.
Porém a pesquisa da correspondência
enviada por Caxias do Paraguai e as memórias de combatentes fazem emergir
um comandante-em-chefe que se expôs
voluntariamente ao fogo inimigo, arriscando a vida (coisa que Solano López jamais fez); que se indignava com o comportamento de parte dos oficiais nos
combates da "dezembrada"; que não esmorecia, apesar da dificuldade de levar
os soldados brasileiros ao combate; que,
em agosto de 1868, defendeu o término
da guerra pela negociação, e não pela vitória militar, de modo a evitar novas perdas e gastos para o Império.
Tem-se um homem que, aos 63 anos
de idade, aceitou o comando de um exército desorganizado e desmoralizado
após a derrota de Curupaiti, quando podia continuar no Rio de Janeiro, em confortável situação. No Paraguai, Caxias viveu angústias, teve dúvidas, mas transcendeu suas limitações, impôs-se grandes sacrifícios pessoais e destruiu o poderio militar paraguaio.
Revisionismo
É surpreendente que,
apesar da sua importância histórica, se
saiba relativamente pouco sobre o duque
de Caxias. Grande parte das biografias
escritas sobre ele é laudatória, inspirada
no livro "Vida do Grande Cidadão Brasileiro Luis Alves de Lima e Silva", do padre Joaquim Pinto de Campos, publicado em 1878. Nas décadas de 1960 a 1980,
Caxias foi vítima de outra deturpação: a
revisionista, que, após responsabilizar
absurdamente a Inglaterra como causadora da Guerra do Paraguai, apresentou
sua atuação no conflito quase como a de
um genocida. Essa versão foi aceita de
forma acrítica pelo meio acadêmico, que
se opunha ao regime autoritário instalado com o golpe militar de 1964. Nesse
contexto, comprometer a imagem de
Caxias, patrono do Exército, implicava
enfraquecer a legitimação histórico/ideológica deste e de sua ingerência na vida política.
O fim da Guerra Fria e, no Brasil, o retorno da democracia despiram os estudos de história de vários condicionantes
ideológicos. Historiadores, guiados pelo
rigor metodológico e pela pesquisa em
fontes primárias, podem, agora, avançar
mais no conhecimento de diferentes aspectos de nossa história. Um desses refere-se à figura de Caxias, que deve ser estudada à luz de seu contexto histórico e
explicada pelos valores do seu tempo.
Mitos e preconceitos ideológicos devem
ser superados.
Francisco Doratioto é professor do curso de relações internacionais da Universidade Católica de
Brasília e autor do livro "Maldita Guerra - Nova
História da Guerra do Paraguai" (Cia. das Letras).
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