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Ideologias linguísticas
"Regras Práticas para Bem Escrever" e "A Norma
Oculta" adotam posições opostas sobre o português
Sírio Possenti
especial para a Folha
Desde que o mundo é mundo, o
outro estrangeiro, pobre, jovem
é considerado bárbaro, isto é, o
que não sabe falar. Alguns pensam que são os representantes do bom
gosto e da razão, elegem profetas que,
contudo, não seguem. Outros, por mais
que falem, acreditam (foram levados a
acreditar) que não sabem fazê-lo.
"Regras Práticas para Bem Escrever",
de Laudelino Freire, e "A Norma Oculta
-Língua & Poder na Sociedade Brasileira", de Marcos Bagno, são livros que tratam dessas questões e defendem discursos opostos. O primeiro combate "o desamor da língua", já que "reduzidíssimo
é o número dos que lhe não são indiferentes". Basicamente, contém 97 dicas (o
autor protestaria contra essa palavra)
que, ao contrário do que o título pode sugerir, servem apenas para "escrever correto". Sua hipótese é que se chega a isso
com algum amor à língua, a leitura cotidiana de seu "vade mecum" e a frequentação de uma lista de autores -"os livros que enumero".
O que mais chama atenção no pequeno
livro é que: a) segue as regras que propõe
(diferentemente dos que têm as mesmas
concepções); b) defende posições e estruturas discutíveis (o francês é língua
"diversíssima da nossa"; a ordem portuguesa seria VSO [verbo, sujeito, objeto];
passivas se fazem com "de", e não com
"por"); c) contém equívocos banais de
análise ("passar" seria objeto em "Eu vi
passar dois brinquedos" -ora, o objeto
é claramente a oração "passar dois brinquedos"). Trata-se, assim, de excelente
documento de época (década de 1920),
tanto sobre a representação da língua
quanto da precariedade da teoria.
Norma imaginária
O livro de Bagno vai na direção inversa e também o faz
na teoria e na prática. Combate o excessivo conservadorismo, por exemplo, e
adota conscientemente construções como "será que tem algum jeito de resolver
isso?" e "retiraram ela da vida social"
-o que está longe do suposto "vale tudo". Defende que a chamada norma culta é mais imaginária que real (daí o jogo
"norma oculta/culta"); analisa afirmações conservadoras na mídia sobre "língua correta" e as avalia com critérios das
teorias variacionistas; apanha os críticos
"errando", o que mostra que a língua é
variável para todos os falantes e que certos juízos revelam mais preconceito que
saber. Apresenta argumentos factuais
sobre mudanças históricas de nossa língua (uma comparação entre os preceitos
de Laudelino Freire e a "gramática" de
Antonio Olinto, que o apresenta -e reedita-, valeria a pena).
Um dos fulcros do livro é a discussão
sobre norma (culta, erudita), prestígio,
estigma etc., que poderia parecer terminológica, mas que de fato é teórica e
ideológica ao mesmo tempo. Por fim, vale destacar comentários a "Modern Portuguese - A Reference Grammar" (Yale
University Press), de Mario A. Perini,
que apresenta a estudantes estrangeiros
o português brasileiro de hoje. Bagno
reivindica, coerente com sua posição
neste e em outros trabalhos, uma gramática assim para os brasileiros.
Os dois livros retomam doutrinas efetivamente opostas, nos fatos e na concepção do que seja "norma padrão". Tal repetição não os desmerece. O enunciado é
raro, como disse Foucault, e o que importa é compreender por que livros assim aparecem ou reaparecem. Uma hipótese para o caso: também no campo
das ideologias (linguísticas) há dois Brasis, e, nos últimos tempos, temos assistido a um reaquecimento de posições conservadoras e ao crescimento e alguma divulgação de estudos do português do
Brasil "como ele é".
Ponto fraco
Há algumas décadas, o
alvo de Freire eram apenas falantes supostamente desleixados. Hoje, sua concepção enfrenta outras teorias sobre o
que seria saber falar e sobre o português
do Brasil. Um livro como o de Bagno, pela teoria adotada, pega os adversários em
seu ponto mais fraco, ao mostrar que o
português ao qual dizem que são devotados não é o que eles mesmos praticam
(nenhum brasileiro culto será adepto da
ordem sintática proposta e empregada
por Freire em casos como "quando de
gramática se não faz caso" e "e a linguagem em que se ela vaza"). Línguas mudam. E assim os padrões. É principalmente nesse confronto que os livros fazem sentido, não tanto por eventuais
qualidades ou defeitos.
Seria interessante que a polêmica se
tornasse mais conhecida e chegasse à escola, aos meios de comunicação e aos cidadãos cultos em geral, que, a rigor, desconhecem solenemente, em mais de um
sentido, um dos lados da controvérsia.
Sírio Possenti é professor no departamento de
linguística da Universidade Estadual de Campinas.
É autor de "Os Limites do Discurso" (Criar Edições),
"Os Humores da Língua" (Mercado de Letras) e
"Discurso, Estilo e Subjetividade" (Martins Fontes).
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