|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
O modernista de butique
Alessandro Bianchi - 1º.out.2003/Reuters
|
Giorgio Armani após a apresentação de sua coleção de verão, em Milão, em outubro passado |
Retrospectiva em Londres exibe peças do costureiro italiano Giorgio Armani, que buscou recriar em suas roupas a crise das antigas divisões de classe e gênero
John Harvey
especial para a Folha
Talvez haja certa ironia no modo
como as roupas Armani passaram
a ser associadas à indumentária
dos muito ricos. A família de Armani estava longe de ser abastada -ele
diz que gostou do modo como sua mãe
fez uma roupa elegante com uma simples saia e um paletó de seu pai. O próprio Armani começou como vitrinista e
abriu caminho no "prêt-à-porter", e não
na alta-costura. Ele ficou famoso pelo
que fez com o paletó masculino.
Um conhecido clipe o mostra removendo o forro -depois perdendo a paciência e arrancando os enchimentos, a
entretela, toda a estrutura de alfaiataria
que tornava o paletó ereto, importante,
severo. Que pendesse solto e gracioso em
torno de um corpo jovem e bem-feito!
Ao despir os homens de sua concha de
peito elevado -quando ele começou, o
forro dos paletós era preso ao tecido com
cola-, estava substituindo "classe", no
sentido de qualidade, por classe com um
sabor soldadesco, de patente.
Torsos curtos, pernas longas
O próximo passo, inspirado por sua mãe e
por Marlene Dietrich, foi adaptar o paletó e os ternos masculinos às mulheres
-e então transportar a suavidade dos
tecidos femininos para os paletós e ternos masculinos.
Essas mudanças não foram feitas só
por ele, mas Armani ainda pode ser considerado o estilista que decididamente
transportou para as roupas as mudanças
que ocorriam no mundo em geral -a
erosão de certas antigas divisões de poder, tanto de classe social como de gênero. E não o fez com gestos contrários à
moda, mas empunhando firmemente a
carapaça do privilégio e moldando-a em
um leve envoltório para todos.
Houve muitos elementos nas mudanças que realizou. Ele parece ser claramente um modernista, por seu apreço
pelas linhas retas ousadas e retângulos
depositados com leveza sobre as curvas
do corpo. Armani também abraça o corpo com hábeis costuras. Sua tendência
foi erguer a cintura das calças, dando aos homens torsos mais curtos e pernas mais
longas. Nos ternos de peito duplo, alongou o paletó para que o torso duplamente embrulhado ainda se afunilasse.
Suas reformas não foram exatamente
igualitárias. Seus novos tecidos macios
para homens eram tramas caras e especiais, com revestimentos químicos de alta tecnologia. Seu "power suit" sem enchimentos foi criado para um corpo poderoso -para o executivo que tonifica o
corpo na academia enquanto mantém o
apetite aguçado para os lucros da companhia. Armani rapidamente se tornou o
costureiro das estrelas nas premiações
do Oscar, e em certa medida seu sucesso
se baseia no tato de oferecer aos vencedores da sociedade uma maneira luxuosamente estilosa de mostrar que continuam sendo simples e discretos.
Mas um terno masculino é por natureza um uniforme, que afirma silenciosamente sua força pela quantidade. O sentimento de libertação nos desenhos de
Armani talvez tenha limitado seu uso
por alguns poderosos.
Na Inglaterra, um terno Armani será
mais provavelmente usado por pessoas
nos altos escalões da arte do que nos importantes centros de decisão da City, em
Whitehall ou em Westminster. Talvez
não seja de surpreender que o tipo britânico de ética no trabalho -seja como
uma ética do lucro ou uma ética do serviço público- leve em conta um estilo associado à descontração sensual. A sra.
Thatcher recomendava Marks and Spencer -e para qualidade de alto preço
sempre há Saville Row.
Em outros países, uma roupa Armani é
usada de modo mais abrangente. Os diplomatas italianos vestem Armani em
honra de seu país, Berlusconi veste Armani quando insulta um deputado alemão. Mas foi em Hollywood que Armani
arrasou. Os desfiles de moda são sempre
parecidos com a estréia de um filme.
Ambos os eventos são formas de teatro,
com seu desfile afetado de roupas de sonho. A passarela do próprio Armani, incorporada a sua casa em Milão, é gravemente suave, com paredes refletoras sem
janelas, bancos de tecido -cara, cavernosa, criada para causar admiração.
Certamente as roupas de Armani são
mais vistas do que vestidas -em fotos
de moda por toda parte e também em filmes, sendo o mais famoso "Gigolô Americano", em que todos os ternos usados
por Richard Gere são de Armani. Talvez
as próprias roupas Armani sejam um
pouco como astros do cinema e dêem algo a um público que nunca poderá se
aproximar delas. A questão é se elas dão
mais que glamour -uma fantasia da vida longe das dificuldades, sempre jovem,
estilosa, sensual.
O que se diz com maior frequência é
que as roupas Armani criam uma nova
relação entre si mesmas e o corpo em seu
interior. Nas fotos de moda que Armani
divulga a cada temporada, elas caem graciosamente em torno de modelos que
parecem principalmente à vontade. É
claro que as roupas Armani caem e se
dobram especialmente bem quando a
pessoa as usa com as mãos nos bolsos.
Os homens-Armani fazem muito pouco,
mesmo em "power suits". Eles existem,
descontraídos, com uma força gentil.
Coisas de homem
Nisso diferem
das mulheres-Armani. Muitas vezes elas
também têm as mãos nos bolsos, especialmente quando usam blazers ou conjuntos. Mas também fazem coisas que
seus homens jamais fariam, como abraçar-se, levantar um braço acima dos ombros para segurar uma bolsa com um giro no ar.
Alguns de seus movimentos têm um
romantismo padrão -uma modelo nos
fixa com um olhar de sobrancelhas baixas, pressionando a mão na lapela e no
coração. Mas também fazem coisas de
homens que os homens-Armani não fazem, como ficar paradas com ar truculento, os polegares enfiados nos cintos.
A imaginação de Armani se move mais
depressa nos trajes femininos. Suas inovações mais radicais em blazers e ternos
foram nos femininos -como fazer a lapela de um lado só e talvez dobrada sobre si mesma, como se fossem duas lapelas em uma. Um vestido preto esguio,
agarrado ao corpo, tem no busto as duas
pontas quadradas de uma faixa de cetim
branco, cada qual com uma casa e um
botão preto, formando uma gigantesca
manga e punho masculinos. O vestido
torna-se um grande conjunto-manga
preto -fendido no joelho para mostrar
um tornozelo.
Também é na vestimenta feminina, e
não na masculina, que ele faz o jogo da
moda de expor parcialmente o corpo.
Em um conjunto com calças de risca de
giz exageradas, o blazer preto é usado
com uma gravata masculina desatada
-e sem camisa, blusa ou sutiã. Outra
roupa tem o top semelhante a uma casaca de homem, abotoado pela metade como deve ser, tendo por baixo apenas a
bela pele da modelo. Esse top, que não
tem ombros, é sustentado por uma alça
preta ao redor do pescoço, na forma exata de uma gravata-borboleta desfeita.
Tanto em seus vestidos baseados em
ternos como nas confecções de organza e
tafetá, o efeito dessa provocação, ao mesmo tempo expondo e velando a pele, é
transformar o corpo firme de uma mulher em um animal mágico e fugaz. Podemos nos perguntar, então, voltando a
sua indumentária masculina, o que as
roupas dizem sobre os homens e seus
corpos. Apesar de toda a inovação, sua linha masculina também é basicamente
tradicional, tanto por deixar os homens
estáticos, enquanto as mulheres são móveis, como por raramente revelar mais
que o rosto e as mãos masculinas.
Seus tecidos masculinos são quase
sempre opacos. Um smoking Armani revela a figura dentro dele pelo modo como o tecido pesa, sem apertar, no peito e
nos membros. Se seus trajes masculinos
também têm mais textura que os femininos, com camadas de tramas sobre malha, suponho que seja uma alusão ao fato
de que o corpo oculto do homem pode
ser cabeludo -esse deve ser um dos motivos pelos quais muitas vezes a moda
mantém o corpo masculino embrulhado. Ele já disse que gosta de couro por
sua qualidade de "una seconda pelle" e,
ao remover os forros dos ternos, lhes dá
um caimento mais de segunda pele sobre
quem os usa. Mas enquanto um vestido
segunda-pele pode ter uma aparência
molhada, para um homem ela é enfaticamente uma pele solta. Um paletó de couro Armani pode parecer uma pele de animal bem larga.
O sentimento de libertação nos desenhos de Armani talvez tenha limitado seu uso por alguns poderosos
Falta e excesso de material
O que
é marcante em sua linha masculina é
que, enquanto ele notoriamente reduziu
os enchimentos, acrescentou muito mais
do que tirou -no corte largo, em seu
confortável excesso de material. Há claramente um prazer na própria amplidão
macia. Os homens foram com frequência associados a rigidez e severidade, movendo-se rapidamente em roupas tubulares como robôs revestidos de tecido.
Há uma generosidade descontraída nos
espaços livres de Armani.
Durante vários séculos as roupas femininas foram marcadas pela largueza -a
cauda flutuante atrás de túnicas de cintura justa, as ondas balouçantes de saias
sobre anáguas-, e podemos associar essa amplidão ao espaço emocional, que
era prerrogativa das mulheres. Pergunto-me se, enquanto desenvolvia conspicuamente o terno masculino para mulheres, Giorgio Armani também transportou silenciosamente da indumentária feminina para a masculina a largueza,
a textura e a sutileza da cor que acompanham o espaço emocional e a descontração. Ele teria feito, assim, algo grande,
mais do que no sentido literal.
Quando sua mãe vestiu um paletó de
homem sobre a saia, habilmente criou liberdade, assim como moda. O próprio
Armani se move com inteligência para
além e aquém de fronteiras. Às vezes
suas roupas são até meio do avesso, como a miniarmação de crinolina que uma
modelo usa por cima do "chiffon"
-juntamente com um blazer abotoado
de aspecto severo, com corte preciso em
seda floral. Com todo o seu estilo de luxo,
há liberdade no modo como Armani faz
os opostos interagirem. Assim as mulheres podem adotar o terno listrado dos
homens -e os homens podem finalmente se mover dentro das roupas, em
vez de usá-las como um contorno.
"Giorgio Armani - Uma Retrospectiva" está em
cartaz na Royal Academy, em Londres, até 15/2.
John Harvey é professor no Emmanuel College, da Universidade de Cambridge, e autor de "Men in Black" (University of Chicago Press).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Texto Anterior: + trechos Próximo Texto: + livros: Os cacos da quarta parede Índice
|