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Em "O Olhar e a Cena", Ismail Xavier recupera os fundamentos teatrais e literários da representação cinematográfica para analisar obras de Hitchcock a Nelson Rodrigues
Os cacos da quarta parede
Silviano Santiago
especial para a Folha
Por ter sido confundido desde as
suas origens com o alicerce técnico e industrial que o possibilita, o
cinema sempre recorreu a notáveis reflexões de caráter teórico e formal
para sustentar dignidade artística. Sem a
notável geração de teóricos russos, em
que sobressaem Eisenstein ("A Forma
do Filme", lançada no Brasil pela ed. Jorge Zahar), Pudóvkin ("O Ator no Cinema") e Lev Kulechóv, o filme mudo teria
sobrevivido ao advento do som? O moderno cinema europeu teria existido sem
a sofisticada reflexão que nos foi legada
por André Malraux ("Esboço de uma
Psicologia do Cinema"), por André Bazin (o realismo "ontológico" do plano-sequência) e pelos redatores dos "Cahiers du Cinéma" e de "Cinema Nuovo"?
Glauber Rocha me disse que não teria
feito os filmes que fez sem a leitura, nos
anos de 1950, da provinciana e atualizadíssima "Revista de Cinema" (de Belo
Horizonte).
Ao amparar-se na singularidade formal do filme e na autonomia teórica dela
derivada, e não no peso constrangedor
das regras pragmáticas da indústria cultural, a linguagem cinematográfica foi
articulando também e paradoxalmente
relações sólidas e duradouras com as demais e tradicionais linguagens artísticas
da modernidade. Como pensar as relações entre o cinema e o romance da geração perdida norte-americana (Dos Passos, Faulkner, Hemingway etc.) sem a
teorização sobre behaviorismo, feita
com tanta competência e elegância pela
esquecida Claude-Edmonde Magny
("L'Âge du Roman Américain")? Sem
suas análises, o que seria dos filmes de
Sam Packinpah e Quentin Tarantino?
Herança do século 18
Como pensar
a composição assindética (não-discursiva) da "poesia concreta" sem a teoria de
Eisenstein sobre montagem? Como não
reconhecer que Eisenstein e os irmãos
Campos são devedores, por seu turno, da
pesquisa de Ernest Fenollosa sobre o
ideograma chinês, aclimatada à poesia
por Ezra Pound?
O notável na contribuição de "O Olhar
e a Cena", de Ismail Xavier, é que, a essa
multifacetada visão horizontal da arte cinematográfica, ele soma a verticalidade
da indagação de caráter histórico sobre a
"representação" nos tempos modernos.
Para analisar, entre outros, os filmes de
Hitchcock ou as transposições para o cinema das peças de Nelson Rodrigues, dá
vida aos esquecidos fundamentos teatrais e literários da representação cinematográfica. Na página de abertura da
coletânea, Ismail Xavier escreve que a interpretação, na crítica de filmes que faz,
"se enriquece a partir do cotejo com formas da encenação teatral herdadas pelo
cinema". Aviso que não estará se referindo a adaptações de peças de teatro ao cinema (embora na última parte do livro
também se refira à questão), mas ao fundamento canônico -teatral e literário- do filme.
Em miúdos: falar sobre a sétima arte é
falar sobre a "herança" do século 18 e dos
escritos sobre teatro do filósofo Denis
Diderot. É falar ainda da "herança" legada pelos prefácios do romancista Henry
James, escritos na virada do século 19, e
pelo romance clássico de Marcel Proust.
O filme enquanto arte foi montado em
cima de, ou a partir de, capitanias hereditárias. São elas que servem de alicerce a
sustentar os vários andares horizontais
da indagação teórica, que instituiu a singularidade do cinema. Esse alicerce recauchutou a crítica especializada do filme com empréstimos tomados à estética
da arte nos tempos modernos.
Do iluminista Denis Diderot Ismail Xavier absorve o conceito teatral de "quarta
parede". Das quatro paredes do palco, é a
que "ignora o olhar externo [da platéia] a
ela dirigido". Com competência e sob a
supervisão técnica de Peter Szondi ("On
Textual Understanding and Other Essays"), Ismail Xavier recompõe e atualiza
o conceito de Diderot sob o prisma da
emancipação do palco (do trabalho do
diretor, dos atores etc.), a fim de remetê-lo à arte da composição, tal como se encontra numa obra de arte pictórica. Ou a
fim de remetê-lo, acrescentemos, à "psicologia da composição", tal como expressa na arte literária. Não há espetáculo teatral, cinematográfico ou literário
sem mise-en-scène, acrescentaria Ismail
Xavier com um dos olhos na hegemonia
das artes plásticas. O seriíssimo Diderot
não teria de ser contra os "golpes de teatro"? Descoberto isso, o outro olho de Ismail Xavier, mais original e ousado, se
lança sobre as relações da representação
visual com a literatura.
Ponto de vista
De trecho de "Em
Busca do Tempo Perdido", de Marcel
Proust, e principalmente dos prefácios
do romancista Henry James, via Percy
Lubbock (pena que tenha se esquecido
de Wayne Booth, leitor mais atual da tradição ficcional jamesiana), Ismail Xavier
toma de empréstimo a questão crucial
do "ponto de vista" narrativo. Este serve
para acoplar o "olhar" à "cena", como
está no título da coletânea de ensaios.
Acopla-os, sim, ao mesmo tempo em
que instaura a descontinuidade entre cena e olhar como fundamento do fechamento libertário do palco e da abertura
para as emoções "selvagens" (Virginia
Woolf) na platéia. Não há representação
modelar como não há espectador total.
Há infinitas e monstruosas (diria o argentino Borges) combinações. Liberdade, igualdade, fraternidade.
A teorização de Ismail Xavier, devedora do iluminismo de Diderot e do puritanismo de Henry James, aqui e ali pode
parecer asséptica (principalmente quando se desvencilha da perversidade de
Proust ou do nosso Nelson). Sua reflexão
sobre o teatro e o cinema pode pecar pela
falta do avesso, ao não querer absorver
manifestações populares e sujas, ou seja,
"exibicionistas" (refiro-me, por exemplo, ao já citado horror de Diderot
ao "coup de théâtre"). Um pequeno
exemplo. Segundo Béla Balász, citado
por Ismail Xavier, a descontinuidade entre olhar e cena pode ser desconstruída
de um lado e do outro. Escreve ele: "A
força das emoções [olhar], o dinamismo
da imagem [cena] e o processo de projeção-identificação criam no espectador
cinematográfico um senso "de estar dentro da cena'".
No teatro e no cinema populares, emoções sem força e imagens sem dinamismo podem gerar, de improviso, fascinantes processos de projeção-identificação. O olhar de Caetano Veloso, direcionando do palco a reação na platéia de x, y
ou z: "E quero que você venha comigo".
Aproveito a deixa e falo apenas de um
processo exibicionista -o "caco". Por
um lado, transgressão do ator ao texto
que diz, ao diretor que o dirige e à quarta
parede; por outro, ponte risonha (e, nos
melhores casos, irônica) entre a cena e o
seu espectador.
Torta de chantilly
Ao inverso da
pergunta feita pelo literato pedante a Joseph Cotten no filme "O Terceiro Homem", pergunto a Ismail Xavier "onde
colocar" Procópio Ferreira (Dercy Gonçalves...) e Mazaroppi (Grande Otelo...)?
Como conseguem eles se posicionar junto da platéia a fim de levar o espectador
para dentro da cena? Ao falar de Nelson
Rodrigues, o texto de Ismail Xavier tem
de se abrir para "dissolver" o "homem
honesto" (homem probo, traduziria assim a expressão "honnête homme") de
Diderot. Continua ele, negando o que tinha sido construído como "teatro": "O
comportamento se desdobra e envolve
construção de imagem, exibicionismo,
presença do teatro onde ele não pareceria estar". Não dizem que foi pelo caco de
Buster Keaton que a comédia descobriu
a torta de chantilly atirada na cara do outro? O que seria do pastelão sem o caco?
O que seria da minha vida sem os filmes
de Buster Keaton?
Será por isso que, em "O Olhar e a Cena", onde se esperavam considerações
oportunas e justas sobre gêneros híbridos como a ópera (ver nota na pág. 64),
onde se esperavam especulações sobre o
exterminador definitivo do teatro que se
apoiava nas artes poéticas clássicas, ou
seja, o "drama romântico" (a não ser
confundido com "melodrama", capítulo
3), ali, existe apenas a alusão ou, simplesmente, o interdito. Tento explicar-me
melhor, dando um exemplo.
Naquele duplo movimento do pensamento crítico de Ismail Xavier (o vertical
que se soma ao horizontal), posteriormente instalado com competência na
particularidade teatral e literária da estética cinematográfica, é que reside o privilégio conferido ao "drama sério", sempre adjetivado por ele de "burguês".
Pergunto-me se a mão forte da ideologia é o melhor instrumento para descrever e analisar transições históricas delicadas, que se passam no campo da estética (teatral, no caso). Explico-me. As ramificações posteriores ao que Diderot
chamou de drama sério não estarão também no questionamento radical da noção de gênero ("genre") no teatro clássico, feita principalmente pelos dramaturgos românticos franceses? Todos lemos
"Racine e Shakespeare", de Stendhal, e o
"Prefácio" ao "Cromwell", de Victor Hugo. Lemos também descrições da "batalha de "Hernani'".
O drama romântico, compósito por
natureza-e não mais a tragédia ou a comédia, consideradas como entidades
puras e autônomas-, traduz uma busca
alvissareira de realismo (não sei mais se
"sério", se "burguês"), certamente irônico. O homem, como diz Hugo, não é só
trágico ou só cômico, ele é "duplex", isto
é, ao mesmo tempo trágico e cômico,
tendendo para o ridículo. Da concepção
do "homo duplex" ("Prefácio" ao
"Cromwell"), fissura corrosiva na seriedade burguesa, estaremos a um passo
das "duas postulações" de Charles Baudelaire (o homem dilacerado entre Satã e
Deus), ou seja, em plena modernidade.
Mais um passo e chegamos às formas de
representação chamadas por Northrop
Frye de "low mimetic" ("Teoria dos Modos", em "Anatomia da Crítica"). O
grande cinema.
Deslizamento de sentido
Numa
curta resenha, não há como dar conta
das minuciosas, esmeradas e definitivas
análises de filmes nacionais e estrangeiros que Ismail Xavier faz. Aliás, estamos
cometendo um engano. "A Cena e o
Olhar" se organiza mais em razão dos filmes, cineastas e teledramaturgos analisados e discutidos e menos em razão de
um encaminhamento histórico e esmagador da argumentação teórica.
Trata-se duma "coletânea" de ensaios.
Muitas vezes, na linearidade da leitura, a
repetição de um argumento vale como
reafirmação de uma vontade crítica. Nas
pequenas traições à memória textual,
que toda repetição interna acarreta, as
afirmações se reabrem como feridas. Estavam a merecer por parte do autor (ou
do usurpador) tratamento mais preciso
ou menos ortodoxo. E o merecem.
Vale a pena ler também o deslizamento
de sentido -ou o movimento do queijo
"camembert" sob o efeito do calor ambiente (Alain Robbe-Grillet), que traduz,
numa outra perspectiva, o desenrolar do
brilhante pensamento crítico de Ismail
Xavier, de 1988 aos nossos dias.
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "Stella Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos" (editora Rocco).
O Olhar e a Cena
382 págs., R$ 55
de Ismail Xavier. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP,
tel. 0/xx/ 11/3218-1444).
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