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"Nenhum Brasil Existe" reúne artigos de especialistas que abordam temas e figuras da cultura do país
O significante vazio da nação
Se "pequena enciclopédia" é uma qualificação confessadamente irônica, o título principal da obra, emprestado de um poema de Drummond, é tomado a sério pelo organizador
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Nenhum Brasil Existe - Pequena
Enciclopédia" reúne quase 90
artigos de antropólogos, filósofos, críticos literários e poetas
sobre os mais variados temas e figuras da
cultura brasileira.
Em torno da "Carta" de Pero Vaz Caminha há quatro textos. A obra de Gilberto Freyre merece seis; mas Florestan
Fernandes, José de Alencar e Luís da Câmara Cascudo não foram esquecidos. Na
seção "Intermediários Culturais" analisam-se figuras como Ziembinski, Le
Corbusier, Debret, Elizabeth Bishop e
Stefan Zweig.
Entre os colaboradores, encontramos
Walnice Nogueira Galvão (num artigo
introdutório sobre "Os Sertões"), Silviano Santiago (Monteiro Lobato e o parasitismo brasileiro), Luís Costa Lima (sobre Oliveira Lima) e João Adolfo Hansen
(sobre o padre Vieira). De Gregório de
Matos (Adriano Spínola) ao rap (Maria
Rita Kehl), da arquitetura de Diamantina
(Roberto Conduru) ao papel do rádio no
cotidiano brasileiro (Lia Calabre), do visconde de Cairu (Pedro Meira Monteiro)
a Roberto Schwarz (Regina Lúcia de Faria), tudo cabe nesta "pequena enciclopédia" -título irônico para uma compilação-mamute de 1.108 páginas-, organizada por João Cezar de Castro Rocha
com a colaboração de Valdei Lopes de
Araújo.
Difícil dar conta de um livro desses.
Trata-se de fenômeno editorial "sui generis". É como se a obra procurasse, ao
mesmo tempo, abarcar toda a cultura
brasileira e provar a impossibilidade de
seu próprio projeto: daí que um panorama sobre o que se pensou sobre o Brasil
tenha por título "Nenhum Brasil Existe"
e que qualquer totalização interpretativa
a respeito de nossa identidade se esfacele
em quase uma centena de ensaios monográficos. Se "pequena enciclopédia" é
uma qualificação confessadamente irônica, o título principal da obra "Nenhum
Brasil Existe", emprestado de um poema
de Drummond, é tomado a sério pelo organizador. João Cezar de Castro Rocha
acredita que "a nação seria antes um significante vazio ao qual se atribui uma
carga semântica segundo as diferentes
necessidades geradas pela contingência
das circunstâncias históricas". Valeria
então saber qual a circunstância histórica-e a que necessidades responde- a
própria idéia de que nação seja um "significante vazio"...
São inevitáveis os paradoxos nesse tipo
de discussão. Para Castro Rocha, "nem o
Brasil nem os brasileiros existem, ou melhor, somente existem através das imagens que deles construímos". Mas basta
perguntarmos qual o sentido da palavra
"deles" nessa frase para que o raciocínio
fique próximo de autodesmentir-se.
"Deles" quem? E quem é esse "nós" que
constitui o sujeito oculto da frase? O organizador revela de todo modo a correta
intenção de não buscar uma identidade
nacional única, o "caráter nacional brasileiro", sem dúvida mais o campo para
construções míticas do que para investigação cultural aceitável.
O livro pode ser entendido, porém, como sintoma de uma outra lacuna, de
uma outra inexistência. "Nenhum Brasil
Existe" nasceu originalmente como um
número especial da revista "Portuguese
Literary and Cultural Studies", dedicado
ao Brasil, a que foram acrescentados 25
outros artigos. O que na verdade não
existe é uma revista cultural brasileira
que pudesse, de três em três meses por
exemplo, acolher a imensa variedade de
autores e temas tratados neste livro.
A questão não é apenas de economia
ou de logística editorial. Assim como o
Brasil, o tipo de leitor e o tipo de leitura
pressupostos em "Nenhum Brasil Existe" tampouco se totalizam numa única
individualidade. A publicação pode
atrair o interessado em ler um estudo de
Heloísa Toller Gomes a respeito de "Menino de Engenho", de José Lins do Rego
-que não será o mesmo leitor do estudo
de Lilia Schwarcz a respeito de José Murilo de Carvalho nem o da análise de Paulo Knauss sobre um irrealizado monumento em homenagem ao índio brasileiro, no contexto do centenário da Independência, em 1922. Se uma discussão
sobre a "cordialidade do brasileiro", feita
pelo organizador do volume, corresponde ao escopo mais amplo de fazer a crítica da noção de identidade nacional, são
de foco mais restrito, sem dúvida, o estudo sobre o fichário e o projeto de enciclopédia brasileira de Mário de Andrade ou
um artigo sobre a política portuguesa de
imposição da homogeneidade linguística no Brasil do século 18.
Pode-se, por fim, aventar uma possibilidade irônica: a de que a inclusão de tantos e tão diversos textos no volume termine representando, sem querer, certa
"cordialidade" editorial ou ainda a imagem de um país de dimensões continentais, desordenado e confuso, mas repleto de riquezas a explorar.
Nenhum Brasil Existe
1.108 págs., R$ 113,00
João Cezar de Castro Rocha (org.). UniverCidade/
Uerj/Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, CEP
20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).
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