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Sai no Brasil nova tradução do primeiro volume das "Notas de Literatura", em que o filósofo alemão discute temas como o papel do artista e lírica e romance
A ferida Adorno submersa no indizível
Intransigência e firmeza, agudeza e estranhamento confluem no "aguilhão social", ímpeto e energia de seus escritos
Leopoldo Waizbort
especial para a Folha
Inicialmente "palavras sem canções", por sugestão do editor Theodor W. Adorno acabou por intitular "Notas de Literatura" suas "partituras com respeito à literatura", cujo
primeiro volume acaba de ser publicado, iniciando a edição da série (em 4
volumes). O livro reúne, em centena e
meia de densas páginas, nove ensaios
escritos logo após seu retorno à Alemanha, nos anos 50 (com uma exceção, um fragmento do início dos anos
40). Discutindo temas aparentemente
muito variados -lírica e romance,
ensaio e pontuação, significação do
artista e de movimentos artísticos-,
o livro possibilita mergulhar fundo no
pensamento de Adorno [1903-69],
multifacetado, rigoroso e provocativo, quando não polêmico.
Do conjunto, três textos já haviam
sido divulgados entre nós anteriormente, mas a reunião enfatiza a variedade, ao mesmo tempo em que cada
um dos ensaios estabelece linhas de
continuidade e tensão com os demais,
formando uma constelação que, a seguir, se espraia para o conjunto da
obra. Cada um deles possui lugar próprio, e, todos, um lugar comum, desafio de dupla face que o leitor é convidado a decifrar. Essa tarefa remete às
especificações históricas da obra de
Adorno, cristalizadas nos ensaios; o
volume, então, exige ponderá-las.
Para que o livro possa ser compreendido como o que pretende ser,
crítica, e não simples opinar descompromissado, é preciso levar a sério as
considerações do autor acerca da impotência do indivíduo: onde buscar
energia para que o possamos ler e
pensar? Para lê-lo não é preciso a liberdade que ele mesmo mostrou tolhida? Assim, a verdade ou inverdade
de seus objetos e suas interpretações
não resta impassível diante das condições de seus leitores, mas deles depende, a não ser que convertamos Adorno em um "guru", como ele mesmo
surpreendentemente alertou.
É por essa razão que Adorno é uma ferida, tal como argumentou com relação a
Heine. Em ambos os desterrados permanecia viva a "imagem de uma sociedade
justa" e de uma "felicidade irrestrita",
cujo meio era a fidelidade a "um conceito
não diluído de Iluminismo". Intransigência e firmeza, agudeza e estranhamento confluem no "aguilhão social", ímpeto e energia de seus escritos.
Dor sem expressão
Contudo a lírica de Heine, embora mediada, ainda pôde usufruir da imediatidade -uma força de comunicação e experiência comum- que permanece interdita ao ensaísta do século seguinte. Sua capacidade
de comunicar, assim como a possibilidade de referir-se a experiências comuns,
se acha obstruída pela tendência histórica: violência, reificação e alienação; mesmice, atrofia da fantasia e indiferença;
"falta de cultivo da cultura", "sociedade
socializada" e "eliminação do sujeito"
compõem um diagnóstico e situação que
não se confunde com a hora histórica de
Heine. Daí que a ferida Adorno sangre de
modo próprio, imersa em um mundo no
qual a dor já não encontra expressão, por
ter se tornado indizível e por termos nos
tornado insensíveis.
Adorno tentou alinhar-se a Heine, reconhecendo que "toda expressão é vestígio de sofrimento" e transformando toda a insuficiência comunicativa, de experiência comum em expressão da fratura,
como aprendera na música na qual se
educou, da "segunda escola de Viena".
Não por acaso, compreende o ensaio como "destinado a ver o iluminado, não a
luz", e o volume se oferece como uma série de "iluminações", pensando seus objetos em uma multiplicidade de camadas
que se relacionam entre si e em cujo conflito pode relampejar, por um instante, o
possível, superando sua própria impossibilidade. Essas a utopia e a promessa
adornianas, reiteradas a cada ensaio.
Mas quais são os seus meios? A linguagem aparece sempre como algo estranho, que se desdobra em dupla dimensão (e desdobramento, aqui, é figura da
dialética): na obra literária, que Adorno
inquire, e no seu próprio procedimento
crítico, linguagem estranhada que desentranha o estranho, a ferida e a dor da
obra de arte. Linguagem, portanto, é
uma certa experiência, que emerge lançando mão de momentos característicos
de sua dialética: contradição, mediação,
determinação e negação.
"Palco da experiência"
Cada um
deles, como uma corrente submersa e
convulsa, articula o pensamento no interior de cada ensaio e para além, em rigorosa construção expressiva. A busca do
núcleo histórico da verdade faz da experiência o cerne do ensaio, pois que "a experiência individual já é mediada ela
mesma pela experiência mais abrangente da humanidade histórica". Daí a idéia
de que não só o artista, mas o próprio ensaísta, se torna "palco da experiência intelectual", "representante", "sujeito social coletivo". É nessa direção que se deve
compreender o sentido enfático que
Adorno adjudica à "experiência".
Ademais, como na linguagem confluem os impulsos subjetivos, por um lado, e ela é o medium dos conceitos, por
outro, ela se torna mediação e determinação do particular e do universal; nesse
movimento passa a valer, para o ensaio
adorniano, a "proposição especulativa,
segundo a qual o individual é mediado
pelo universal e vice-versa". Em seu impulso crítico, almeja a crítica recíproca
do particular pelo universal e do universal pelo particular, assim como a determinação do positivo se faz pela via do negativo (é "representando um mundo que
rejeita a paz que o poema reafirma que,
apesar de tudo, há paz").
O mergulho no objeto, buscando desvendar seus pontos cegos, fulcros de seu
teor de verdade, desemboca sempre, de
algum modo, na sociedade. Nas mediações históricas dos objetos "está sedimentada a sociedade como um todo".
Entretanto como aparece a sociedade
neste livrinho? Uma série de determinações negativas (não-liberdade, não-cultura, não-autonomia, não-comunicação,
não-espontaneidade etc.) se acumula
sem cessar, forçando o conceito ao máximo, intervertendo-o até tornar-se não-sociedade. Esse movimento, de contradição e interversão, revela o potencial
crítico do conceito, no qual reluz um
momento utópico de reconciliação.
Camadas históricas
É preciso notar, contudo, que tudo isso depende do
movimento histórico da sociedade, que,
como um secreto motor e mola, está por
trás de cada determinação sua. Se o ímpeto histórico arrefece, se o presente se
eterniza, essa força atrofia e o movimento pára. Por essa razão, ler Adorno hoje
exige uma ponderação muito acurada do
movimento histórico e das forças que o
impulsionam ou paralisam.
Não obstante a complexa e praticamente inesgotável semântica do movimento que impregna todo o processo do
moderno e que ainda hoje conduz cegamente, é preciso refletir se não há aqui
uma interversão, verdadeiro acontecimento histórico, no qual dinâmica se
torna estática e o movimento histórico,
em desaceleração brutal, não se converte
em mesmice. Ler Adorno exige considerar não somente seus objetos e interpretações, mas as camadas históricas que
perpassam e determinam tudo isso, nós
leitores inclusive.
O que leva a perguntar, parafraseando-o, se o princípio de individuação que se
concretiza em seus escritos não permanece na contingência de uma existência
cindida e isolada. Pois pretender a universalidade ou mesmo uma comunicação produtiva é algo mais complexo do
que a boa tradução e edição de seus escritos, de sua reprodução mais ou menos
correta em outros textos e discursos.
Trata-se, antes, do movimento que neles
desemboca e que continua para além deles, sem deixar de ser aquele momento
inicial e, ao mesmo tempo, deixando-o
para trás.
O contexto alemão
No entender de
Adorno, uma vez que o pensamento é
impulsionado pela obra de arte, dela se
liberta e traça seu próprio desdobrar. Toda "configuração linguística", seja poema, romance ou ensaio, clama por reflexão, atribuindo ao leitor uma tarefa essencial, que é tornar vivo o pensamento.
Segundo ele, "a atualidade do ensaio é a
do anacrônico", o que remete ao seu núcleo temporal, cujo teor de verdade é intrínseca e enfaticamente histórico. Evidentemente, um dos sedimentos históricos dos ensaios é seu contexto alemão,
como intervenções de um intelectual no
debate cultural na Alemanha Ocidental
dos anos 50.
Contudo não é apenas esse o anacronismo que vive nesses ensaios, hoje.
Compreender sua substância, vale dizer,
sua transformação histórica, é condição
para que eles se tornem legíveis para seus
leitores de outros tempos e lugares, sob
pena de se petrificarem. Para que sejam
mais do que documentos, exigem reflexão. Hoje, quando os anestésicos são
muito mais eficazes, terá a ferida Adorno
deixado de doer e sangrar?
Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na
USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel"
(editora 34).
Notas de Literatura 1
176 págs., R$ 27
de Theodor W. Adorno. Tradução de Jorge de
Almeida. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/ xx/11/3816-6777).
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