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"Máquina de Escrever" reúne a produção poética completa de Armando Freitas Filho, desde "Palavra", de 1963, até "Numeral Nominal", de 2003
Reflexão na verdade sólida do corpo
Alcides Villaça
especial para a Folha
Nesta reunião de 13 livros está
toda a poesia, até agora, de Armando Freitas Filho -analisada com empatia por Viviana
Bosi (estudo introdutório) e Sebastião
Uchoa Leite (orelhas). Da estréia, em
"Palavra" (1963), até o momento mais
recente de "Numeral Nominal" (2003),
expõe-se o longo percurso das formas,
temas e atitudes que responderam e continuam a responder aos desafios da expressão poética de toda uma vida. A regularidade da produção e da publicação
não deixa dúvida quanto à motivação vital e permanente -que se confirma, lendo-se os poemas, no diálogo mantido
entre os parâmetros orgânicos de uma
composição disciplinada e as reiteradas
obsessões de quem se dispõe, a par de se
deixar tocar pelos fatos, a "sofrer o livro".
Menos que bruscas rupturas internas,
há deslizamentos e variações na história
constituída pela poesia de Armando
Freitas Filho. Ele deseja captar tanto a
verdade sólida do corpo como a mobilidade nervosa da especulação auto-reflexiva; mas, para reproduzir ambas, vale-se de um espelho -a linguagem- de
cuja fidelidade logo desconfia e em cujos
limites tanto se compõe como se desfigura. Essa operação dramática, a um tempo
construtiva e destrutiva, é uma das tendências dominantes da lírica contemporânea, de que esta "Máquina de Escrever" é uma expressiva formalização.
Abertura da linguagem
A matriz
construtiva começa afirmando-se enquanto tal, armada de compromisso e
projeto (como nos livros iniciais, "Palavra" e "Dual"), mas aos poucos o sentimento da insuficiência da vida e das palavras a ela se agrega e a corrói. Se por um
lado os obstinados procedimentos da
paronomásia, da fragmentação discursiva e da seriação nominal apontam para o
manejo e a domesticação das palavras,
por outro as imagens e os ritmos vão-se
imprimindo de modo mais afetivo e,
portanto, mais problemático -o que
talvez permita que falemos numa progressiva abertura da linguagem para o
plano das emoções vividas.
Entre Drummond e Cabral, o poeta
costura em sua máquina de escrever as
operações divergentes do segmento reflexivo -"palavra puxa palavra"- e das
aparas do tríduo "silepse, lapso e síncope". No livro mais recente -"Numeral
Nominal"-, o sentimento do tempo
surge como "resíduo/ relutante da estrela que restou": não traduzirá esse apontamento, como em última versão, a persistência de algum mito surdo, secreto,
apenas pressentido, que sempre terá animado as arremetidas da linguagem?
As incontáveis epígrafes, dedicatórias e
citações compõem um sugestivo universo de afeições eletivas -Gullar, Cabral,
Drummond, Nerval, Valéry, Baudelaire,
Godard, Jacques Tati, Webern, Ravel etc.
etc.-, convocando uma ampla constelação de artes e cânones da modernidade
em que o poeta explicitamente se inscreve. É nessa explicitação continuada, posta tanto no manejo ostensivo de recursos
quanto nas alusões a um progressivo vazio, que residem a conquista e o risco da
poesia de Armando Freitas Filho -pois
às vezes o exercício da variação cai na cilada do baixo-contínuo.
É sintomático que tenha ido buscar em
Clarice Lispector, mestra na arte de expor, multiplicar e enfeixar os nervos da
vida e da escritura, a epígrafe geral da
obra reunida e o título do livro: "O que
sou neste instante? Sou uma máquina de
escrever fazendo ecoar as teclas secas na
úmida e escura madrugada (...)".
Espelho
Já a multipresença de Ana
Carolina César, a partir do livro "3 x 4"
(1985), encena a um tempo a amada musa da arte, da vida e da morte e oferece ao
poeta, qual espelho contíguo, os critérios
de uma poesia similar, em que o refinamento do literário, o riso da farsa e o
mergulho do corpo no vazio se transfundiram. Como numa gravura de Escher, o
poeta diagnostica: "Doente de mim/ desde que a escrita/ juntou-se à vida, com as
linhas/ da mão misturadas às do papel".
Nem tudo se passa no palco exclusivo
da consciência de artífice, embora essa
seja a força condutora da poesia de Freitas Filho: há os cenários do quarto, da cidade do Rio; há muitas pessoas, objetos e
fatos apanhados numa rede sensitiva,
mas exigente, a que não falta a ironia de
quem, íntimo das facas de Cabral, considera também o "porta-facas/ da Tok&Stok, em bloco maciço"; há a necessidade
de quem, no tempo do regime militar,
exercita vingativamente a linguagem "à
mão livre", cifrada em poesia.
Distante do cotidiano cheio de promessas dos modernistas, mas tendo ainda na cabeça o "Abro a Cidade como um
Jornal", de Oswald de Andrade, o poeta
está mais próximo da poesia urbana de
um impactado Gullar ou de um deslocado Drummond e incorpora com estranhamento os luminosos, a televisão, as
"gritarras [sic] elétricas", as manchetes
dos jornais. Mas o pacto essencial é feito
com o leitor, irmão e hipócrita: sabem
ambos que a cidade, os eflúvios da tarde,
os seres e as coisas mais urgentes não salvam ninguém e que tudo se passaria entre os arrepios do prazer corporal e os da
cotidiana anunciação da morte, não os
intermediasse essa arquiamante, sublimada na plena insuficiência, que é a linguagem da poesia moderna.
Movimento essencial
O poema
"Matéria", do livro "De Cor" (1988), diz
muito do movimento essencial que venho buscando reconhecer: "Parece que
os séculos/ cuidam dos castelos/ que no
alto das montanhas/ são os sonhos das
pedras/ ou o desejo das nuvens./ Escrever é uma pedreira./ Se me atirasse daqui/ de uma de suas torres de marfim/
cairia, talvez/ inteiro/ em corpo reduzido/ na página de qualquer jornal./ Escrever é uma pedraria". Entre os sonhos das
pedras e o desejo das nuvens, entre a pedra bruta e a preciosa, entre os castelos e
a página de um jornal, entre o trabalho
da pedreira e o capricho da pedraria, há
largo espaço para ascensões e quedas repetidas, para o espelhamento dialético
entre o céu e a página.
Dos poemas iniciais, em que o poeta se
aproximou da poesia Práxis (talvez pela
necessidade juvenil de conjugar a rigidez
formal e a ideológica), até os versos da alta maturidade, Armando Freitas Filho
veio alargando seus ritmos e adensando
suas imagens, sem abdicar da atitude do
poeta que sofre a criação.
Como nos projetos de um Mallarmé ou
um Mário Faustino, tudo poderia se converter num livro único, contínuo, totalizado em cada fragmento e fragmentado
de um Todo. A palpitação dos teclados
das máquinas há tempos vem soando
como uma imitação de um ritmo que
gostaríamos de trazer de cor.
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira
na Universidade de São Paulo.
Máquina de Escrever
608 págs., R$ 64
de Armando Freitas Filho. Ed. Nova Fronteira (r.
Bambina, 25, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/ xx/ 21/ 2537-8770).
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