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Com Gadamer, me libertei da camisa-de-força do debate ideológico que envenenou muitas cabeças filosóficas no Brasil
UMA PONTE ENTRE A CONSCIÊNCIA E O MUNDO
1.
Não posso dizer que minha formação intelectual
se deveu apenas à filosofia ou a um filósofo. Para
ela convergiram, entre outras influências, meus três
cursos feitos na universidade -direito, filosofia e psicologia- e minha paixão pela literatura. Cheguei a
Heidegger, primeiro, através de um semestre sobre
Kant ("Crítica da Razão Pura"), em 1955, do qual me
vem o problema da relação entre sensibilidade e entendimento. Na tradição aristotélico-tomista, de onde eu
vinha, isso não era resolvido satisfatoriamente. A questão do fundamento da síntese no juízo se tornara um
problema central. Kant me ensinara algo sobre os limites da metafísica. Em segundo lugar, um curso sobre
Wittgenstein ("Tractatus Logico-Philosophicus"), em
1956, trouxe-me a afirmação de que as proposições metafísicas são sem sentido. Wittgenstein afirmava o vazio
da metafísica.
Quando li "Ser e Tempo", de Heidegger, em 1958, sobre o qual aprendera rudimentos na história da filosofia
contemporânea, topei com a questão não-resolvida da
pergunta pelo ser. Para mim, isso era o problema central da metafísica. Heidegger se propunha a examinar o
sentido do ser a partir de sua analítica existencial.
Com isso se abria, para mim, um campo inteiramente
novo e fantástico para a filosofia: pensar a questão do
ser ligada ao "ser-aí" e, assim, a partir do tempo. Disso
resultou minha tese, que traz o título "Compreensão
(do Ser) e Finitude", na qual um certo idealismo da
compreensão salvava ainda um realismo que liga o homem ao ser. O problema do conhecimento não deveria
ser resolvido nem por uma espécie de iluminação que
vinha de cima, como se afirmava na metafísica, nem pelo dualismo kantiano que perdia o mundo. A abertura
do "ser-aí" enquanto "ser-no-mundo" se deveria tornar o precário fundamento (sem fundo) de qualquer
conhecimento.
À medida que apareciam as obras do segundo Heidegger, realizando a destruição da metafísica e uma nova apropriação por meio da história das diversas teorias
do ser que o confundiam com um determinado ente,
passei a ligar o problema do fundamento do conhecimento na tradição com sua identificação com uma concepção do ente. Pareceu-me, então, ser tarefa para a solução do problema do conhecimento pensar aquilo que
já sempre nos acompanha em qualquer experiência e
que é uma implícita (pré-)compreensão de ser. Assim,
se juntavam ontologia e conhecimento para a (dis-)solução da questão transcendental de Kant numa concepção de transcendental não-clássico, como elemento estruturante e organizador do conhecimento.
2.
Tendo aprendido essa lição de Heidegger sobre a
metafísica e sua história, estava aberto o espaço
para a aceitação da obra de Gadamer, "Verdade e Método" (1961).
Descobri aí o exame da historicidade do sentido e da
impossibilidade de recuperá-lo inteiramente pela consciência histórica. Essa compreensão da hermenêutica
filosófica apresentou-se como um caminho para uma
certa "aplicação" da filosofia ao mundo da cultura. É
claro que Gadamer visava a uma verdade que se manifesta na arte, na história e na linguagem e que precede e
acompanha qualquer questão de verdade e método nas
ciências humanas. Mas as lições de Gadamer pareciam
irrecusáveis para pensar de uma outra maneira que a
ortodoxia as idéias de Marx, Nietzsche e Freud.
Foi assim que me libertei da camisa-de-força do debate ideológico que envenenou muitas cabeças filosóficas
no Brasil. Lendo, concordando e às vezes discutindo
com Habermas e sua recepção de Heidegger, Gadamer
e da hermenêutica, consegui desenvolver muitas reflexões sobre o projeto da modernidade que se reflete nas
ciências humanas. Perdi por esse caminho o otimismo
que pretende continuar o projeto inacabado da modernidade com uma filosofia da história. Assumi a necessidade de solapar o dualismo e o subjetivismo da modernidade, como, de certo modo, Heidegger fizera na sua
crítica à metafísica tradicional. Mas cedo descobri que a
hermenêutica filosófica de Gadamer não é filosofia.
O universo de autores e problemas que aparecem dispersos por meio século -e que são devedores de uma
tradição que foi tomando forma por meio das interpretações e evolução da fenomenologia hermenêutica de
Heidegger- impõe a preparação de instrumentos de
avaliação desse paradigma filosófico e de critérios para
poder separar tantos discursos irrelevantes, de núcleos
efetivamente produtivos para a filosofia atual.
Não posso deixar de citar com especial apreço a presença das idéias de Karl-Otto Apel, sobretudo, em suas
interpretações de Peirce, Heidegger, Gadamer e Wittgenstein. Mesmo que eu perceba os limites de um tipo
de filosofar baseado nas análises da autocontradição
performativa, não posso deixar de ver a seriedade do filósofo que opera com elas.
3.
Ernst Tugendhat (1930) é o autor que em grande
parte acompanhei no desenvolvimento de sua filosofia. Não fosse a sua percepção de filosofia analítica e
de crítica da ontologia e da fenomenologia, dificilmente
eu teria encontrado (e em parte permanecido fiel), a
grande tradição do pensamento analítico e da teoria do
conhecimento. Agrada-me muito a maneira como esse
filósofo trilhou um caminho entre a fenomenologia e a
filosofia analítica da linguagem e do conhecimento.
A presença de um estilo descritivo-estrutural revela
influências da fenomenologia -sobretudo nos seus ensaios descritivos de antropologia filosófica aparecem
questões centrais de "Ser e Tempo". A tradição anglo-saxônica dificilmente aceita sem crítica seus estudos de
filosofia analítica. Reconheço exatamente aquilo que a
ela causa arrepios: uma visão de totalidade que pretende responder a questões centrais do problema do conhecimento e explorar as bases da moral, por meio da
análise da linguagem e da dimensão de profundidade
que torna único o lugar do ser humano no mundo dos
seres vivos. Não sei se é meu difuso contato com a tradição analítica anglo-saxônica que me revelou ângulos
novos de meus velhos conhecidos da fenomenologia e
que representam uma pequena legião. Devo, no entanto, confessar que progressivamente fui percebendo que
a hermenêutica sem a analítica pode ser cega, mas disso
também se segue, para mim, que a analítica sem a fenomenologia hermenêutica ameaça ser vazia.
Ou melhor, a analítica deve, nas minhas inquietações,
enfrentar-se com um velho trauma que percorre a filosofia até hoje, desde a modernidade, e que consiste na
ameaça de um dualismo, na teoria da subjetividade, e
que ainda é típica herança metafísica. Uma vez estabelecida a ruptura entre entendimento e sensibilidade, entre predicação e percepção, entre as palavras e as coisas
entre consciência e mundo, como encontrar uma unidade para o conhecimento? Nisso permaneço fiel a uma
marca que me vem de Heidegger.
É um escândalo estarmos ainda à procura de uma
ponte entre a consciência e o mundo, pois desde sempre, enquanto somos ser-no-mundo, nos é dada uma
unidade na pré-compreensão do ser e de nosso modo
de ser. É essa pré-compreensão que acompanha, como
dimensão antecipadora, toda a discussão de sentido e
significado, toda a relação entre filosofia e conhecimento empírico. Nesse ponto, Heidegger nos deu uma lição
insuprimível: toda a teoria do conhecimento deve ser
acompanhada de uma analítica existencial como espaço para uma ontologia fundamental. Tugendhat, entretanto, me ensinou que as intuições de Heidegger devem
ser levadas à clareza pela analítica da linguagem.
Ernildo Stein é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e autor de "Compreensão e Finitude".
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