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MITO FORTE
EM ROTEIRO DOS ANOS 60 SÓ AGORA PUBLICADO EM LIVRO, O CRÍTICO ROLAND BARTHES DISCUTE A RELAÇÃO DO HOMEM COM O ESPORTE
Alcino Leite Neto
Editor de Domingo
Entre a publicação de "Mitologias" (1957) e o lançamento de "Sobre Racine" (1963), Roland Barthes recebeu um curioso convite: escrever a narração de
um filme documentário sobre esportes. O convite
foi feito por um jovem diretor canadense, Hubert Aquin,
numa carta despachada de Montreal em 4 de abril de 1960.
"Minha intenção não é fazer a história do esporte, mas sobretudo, digamos, sua fenomenologia e sua poética", escreve Aquin, que mais tarde trocaria o cinema pela literatura. Barthes aceitou o convite. Aquin foi encontrá-lo na
França, e, depois, o crítico visitou o Canadá para conhecer
o hóquei, o único dos esportes citados no filme que ainda
lhe era estranho. Além do hóquei, o filme trataria de outras quatro modalidades: as touradas, as corridas de carro,
o Tour de France (ciclismo) e, claro, o futebol.
Em 1º de junho de 1961, "O Esporte e os Homens" estreou na TV canadense, numa série chamada "Tempo
Presente". E nunca mais se falou do filme.
Só agora esse roteiro perdido no tempo -que não foi
nem sequer incluído nas "Obras Completas" de Barthes-
chegou às livrarias do Canadá e da França. "Le Sport et les
Hommes" (Les Presses de l'Université de Montréal, 80
págs., 13 euros) é um pequeno, charmoso e comovente livro de 80 páginas, com o comentário de Barthes (1915-1980), as cartas de Aquin (1929-1977) e fotos esportivas da
época. Em seu prefácio, Gilles Dupuis o qualifica como
sendo um conjunto de "mitologias inéditas", referindo-se
à obra que consagrara Barthes no final dos anos 50 e que
ainda hoje é uma de suas mais lidas.
Sem dúvida, há ecos das "Mitologias" (ed. Difel) no roteiro, mas as diferenças entre eles são o que mais surpreende. No roteiro, Barthes abandona a perspectiva política
(de fundo marxista) e a mordacidade crítica (de laivos
brechtianos) de seu livro famoso -que buscava desnaturalizar certos mitos da sociedade de massa e revelar seu
fundamento ideológico- em prol de uma análise em tom
quase épico e de cunho singularmente humanista sobre a
relação dos homens com o esporte.
No roteiro, Barthes procura o inatual nos esportes
-o mito no sentido forte. "Todo nosso esporte moderno está contido nesse espetáculo de uma outra era, herdeiro dos antigos sacrifícios religiosos", escreve sobre a
tourada, no início do filme.
O esporte moderno não nasce da sublimação da violência de homens contra homens, mas é a estilização de
disputas míticas que eles travam contra inimigos comuns: contra o animal -e "a ignorância, a necessidade"- (na tourada), contra o tempo (na corrida de carros), contra a natureza (na corrida de bicicletas do Tour
de France).
O esporte é um modo espetacular (para quem o pratica e quem assiste a ele) de saber qual é o melhor dentre
os homens, qual possui maior domínio de si, da técnica, qual tem mais capacidade para dominar as coisas.
"Quem se sai melhor em vencer a resistência das coisas,
a imobilidade da natureza? Quem se sai melhor em trabalhar o mundo, oferecê-lo aos homens... a todos os
homens?", escreve Barthes no extraordinário trecho
sobre o futebol, reproduzido a seguir.
Onde encomendar
"Le Sport et Les Hommes", de Roland Barthes, pode ser encomendado, em SP, na livraria Francesa (0/xx/11/3231-4555) e, no RJ, na
livraria Leonardo da Vinci (0/xx/21/2533-2237).
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