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A CESTA SANTA
MARCA DA CULTURA
HEGEMÔNICA NORTE-AMERICANA,
BASQUETE ENCONTRA NO ARO
O SÍMBOLO PERFEITO DA ACUMULAÇÃO
por Moacyr Scliar
Jogo basquete há muitos anos
na Associação Cristã de Moços
de Porto Alegre. Não posso dizer que tenha sido uma trajetória brilhante, a minha; para falar a
verdade, até hoje nunca recebi uma
proposta da NBA [liga de basquete
profissional dos EUA]. Talvez seja
uma espécie de boicote, não sei.
Na verdade, mais que jogador,
sou um espectador privilegiado.
Posso fardar-me, posso entrar na
quadra, posso correr de um lado
para o outro (afinal, exercício é necessário), mas não posso ir muito
além. Cestas, para mim, são um
acontecimento fortuito, com uma
exceção: a cesta de Natal.
Meus companheiros sabem muito bem que o ano não pode terminar sem que eu faça ao menos uma
cesta e, assim, passam-me repetidamente a bola para que o ritual seja
cumprido.
A pergunta que se pode fazer é:
qual a razão de minha insistência?
Por que não arranjo uma atividade
menos frustrante? A resposta está
na mística do basquete, que é apenas uma variante da mística do esporte em geral. Como muitos esportes, o basquete envolve uma bola, esse objeto esférico que pode
simbolizar a Terra, o universo, a
própria existência. E envolve competição, aquela mesma competição
que, em tempos remotos, opunha
os homens de caverna na briga por
território ou os senhores feudais na
luta pelo poder e pela glória.
Mas o basquete traz também a
marca da modernidade; no caso, a
marca da cultura hegemônica em
nosso tempo, a cultura norte-americana. O basquete foi inventado
nos EUA, mais precisamente na
ACM de lá. Tratava-se de encontrar
um esporte que pudesse ser disputado em lugar fechado, durante o
rigoroso inverno do hemisfério
Norte. E aí um prosaico objeto, que
é também um símbolo de acumulação, foi usado: a cesta. Era uma cesta mesmo e ficava no chão (sou dos
que lamentam a transferência dessa
cesta para as alturas).
Diferentemente do futebol, que
depende do pé, o basquete privilegia a mão, e trabalhar com as mãos
foi coisa que os norte-americanos
sempre valorizaram, como postura
ética e forma de gerar riqueza. O
basquete permite escores elevados;
nada daqueles minguados resultados do futebol. Não, há muito ponto. E muita emoção: número, seja
no placar, seja nas cotações da Bolsa, é, sim, emoção.
A bola é importante; igualmente
importante é o aro. Ali está ele, a
materialização do objetivo a ser alcançado. Fazer uma cesta exige habilidade, exige precisão. Há duas
maneiras de fazer cesta. A primeira
é atirar de longe. A bola descreverá
uma curva no ar, encontrará a tabela e, batendo nela, penetrará a cesta.
Ou então irá diretamente para o
aro. E aí pode ocorrer um instante
de suspense, a bola dançando no
aro, indecisa se vai entrar ou não. É
um momento decisivo, extremamente simbólico para uma cultura
que adora decisões tomadas em
frações de segundo; equivale ao
momento em que, nos filmes de faroeste, o mocinho e o bandido sacam suas armas e disparam.
A outra forma de fazer cesta é enterrar a bola. E enterrar a bola corresponde a uma dramática inflexão
na história do basquete, resumida
na frase que dá título a um filme:
"Homens Brancos Não Sabem Enterrar". Quem enterra a bola são os
negros. Das plantações do Sul, onde
trabalhavam como escravos, às
canchas dos estádios, onde brilham
como heróis, os negros americanos
percorreram um longo caminho,
que representa uma espécie de justiça poética.
O basquete ajudou a revelar os
negros como brilhantes esportistas,
o que não deixa de ser desconcertante para os racistas e acrescenta
um elemento adicional à complexa
realidade norte-americana.
Nos Estados Unidos comprei
uma camiseta que diz "Basketball is
life". Não há dúvida: o basquete fala
da vida, fala do mundo em que vivem aqueles que fazem cestas e
aqueles que são, no máximo, espectadores privilegiados.
Moacyr Scliar é escritor, autor de "Saturno
nos Trópicos" (Companhia das Letras), em
que fala do futebol como antídoto brasileiro contra a tristeza herdada dos europeus.
Mas não fala em basquete.
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