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O DUELO DA RAZÃO
AGRESSIVIDADE E CRIATIVIDADE SÃO FUNDAMENTAIS
PARA SURPREENDER O OPONENTE, MAS ARTE DA MEDIDA
PERMANECE ESSENCIAL NA ESGRIMA
por Jorge Grespan
A virtude tomará armas contra o furor..." Assim
começa o verso de Petrarca com o qual Maquiavel, não por acaso, conclui seu "O Príncipe", em 1513. A modificação profunda introduzida pelo Renascimento na arte política e na concepção
de poder se expressa nessas palavras precisamente. Por
"virtude", Maquiavel não designa mais a concepção
cristã do "bom rei", mas uma técnica esmerada de conduzir os assuntos públicos, da qual faz parte a capacidade de medir corretamente o alcance dos benefícios e
prejuízos necessariamente decorrentes da ação política. Essa arte da medida se opõe ao "furor", à emoção
enaltecida na Idade Média como base da conduta simultaneamente heróica e piedosa.
Assim também se passa no uso das armas, que o próprio Maquiavel considerava o fundamento imprescindível do exercício do poder. A qualidade exigida do
guerreiro a partir do Renascimento não é mais o "furor" com que o Rolando das "canções de gesta" havia
combatido nos Pirineus, e sim a "virtude", o sentido da
medida em todos os movimentos. E isso também porque a espada mesma se torna mais leve, dispensando
boa parte da força e da "fúria" para seu manejo.
Agora, mais que força, é preciso destreza, agilidade,
percepção da distância em relação ao adversário, habilidade na mão ou até nos dedos, sim, porque um movimento suficiente na ponta da arma é produzido em geral por um pequeno gesto na empunhadura. Ao contrário dos filmes de capa e espada, em que os atores fazem grandes movimentos do braço para tornar visível
e dramática sua luta, na realidade os gestos devem ser
curtos, quase imperceptíveis, certeiros. É a razão, como
faculdade de avaliar a proporção de grandezas e distâncias, que intervém no calor do embate, calibrando o
emprego da força.
Surgem então os manuais e as escolas de esgrima,
com métodos calculados para ensinar ou aperfeiçoar as
técnicas de duelo. Este, aliás, começa a ser proibido pelo Estado absolutista já no século 17; persiste, contudo,
enfraquecendo-se só no século 19, para desaparecer no
20. É que o Estado moderno (e o contemporâneo) exige
o monopólio da violência: ele é que pretende regular e
estabelecer o seu uso legítimo.
E assim a esgrima se torna esporte. Com a nova finalidade, as armas se tornam seguras e ainda mais leves,
com dispositivos para evitar acidentes e ferimentos dos
praticantes e para registrar os pontos de modo mais
exato. Ao contrário do que ocorria aos duelistas, a possibilidade de os esgrimistas se machucarem não é hoje
maior do que em qualquer outro esporte.
Mas este esporte guarda da sua origem o espírito e a
atitude. Ele ainda se baseia em grande parte na arte da
medida. Ele continua exigindo, além de bom preparo
físico e agilidade, leveza, destreza, concentração, precisão. Mais ainda, apesar de calibrada, a agressividade
permanece fundamental, junto com a explosão e a criatividade para surpreender o oponente. Apesar de uma
certa malandragem das fintas e jogos de corpo e de arma, conserva-se na esgrima a nobreza do uso da espada, o refinamento do florete, a marcialidade do sabre.
Afinal, apesar de toda a técnica, a "virtude" repousa
sempre numa qualidade elevada da alma.
Jorge Grespan é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Revolução Francesa e Iluminismo" (ed. Contexto). Pratica esgrima em intervalos de tempo
que começaram aos 9 anos de idade.
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