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"Um Olhar a Mais" analisa a onipotência da visibilidade no mundo
contemporâneo e a transformação dos indivíduos em "televoyeurs"
Síndrome do olho gordo e do mau-olhado
Um Olhar a Mais
312 págs., R$ 33,00
de Antonio Quinet. Editora Jorge Zahar (r. México,
31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/xx/21/ 2240-0226).
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
O psicanalista Antonio Quinet
dá um banho de conhecimento
na assimilação crítica da vida e
obra de Jacques Lacan (1901-81), o célebre francês continuador de Sigmund
Freud. Outra vez ainda Lacan na cultura
brasileira. Este livro, "Um Olhar a Mais",
não é apenas destinado aos especialistas
da área "psi". Trata-se de uma reflexão
sobre o olho e o olhar desde a caverna de
Platão até a "Casa dos Artistas" e o "Big
Brother Brasil".
O lugar do ver e do ser visto, tal qual
concebido por Freud e Lacan, além de
Michel Foucault e o cinema de Wim
Wenders, com o foco no "video ergo
sum", ou seja: vejo, logo existo.
A visibilidade é o imperativo do espetáculo. A necessidade de ser visto pelo
outro. O minuto de fama. Eis o mandamento do gozo contemporâneo: sorria,
você está sendo filmado. O índice de audiência requer o olho. O cidadão é um
"televoyeur".
Clima pornô
O exibicionismo converte o horror em algo excitante. Ratinho. "Linha Direta". Talks shows. A intimidade em clima pornô. Tudo deve sair
do armário para ser visto. Não há intimidade nem segredo. Tudo escancarado
conforme o "espetáculo obsceno da banalidade".
O olho doente. Mas é o olho que elege
os políticos. Este quadro cultural o autor
denomina "sociedade escópica", da qual
o Brasil não escapa. Padecemos do mal-olhar da civilização.
A sociedade escópica é aquela em que o
olho videofinanceiro faz a lei e o Estado,
de modo cada vez mais totalitário e panóptico: vigilância global. É o olho policial -"algemas eletrônicas, escuta ambiental"-, o olho domiciliar e punitivo
que toma conta de tudo e para o qual não
há esconderijo. O ideal de "transparência", supostamente de esquerda, acaba
por reforçar o vigiar e o punir, contribuindo para a despolitização da sociedade. Escreve Antonio Quinet: "A transparência é o grande inimigo da política".
Mostre-se. Seja uma celebridade. Exiba.
A "vida se transforma numa novela. Filme ou novela, lá estão o olhar da câmera
e do espectador fixado na tela, telinha ou
telão".
O ponto alto deste livro para o entendimento da sociedade brasileira é a reflexão sobre a síndrome do mau-olhado
-o olho gordo, o olho seca-pimenteira-, vinculada à inveja e ao ciúme. Assim funciona a dialética do mau-olhado:
"O bem-visto é olhado pelo mal e o que é
bem olhado é vítima do mau-olhado".
Como dispositivo defensivo, usa-se de
amuletos e das plantas "comigo-ninguém-pode" e "espada-de-são-jorge".
Embora em geral as mulheres sejam
portadoras de mau-olhado, essa síndrome medra em sociedades dominadas pelo patronato personificado. Latifúndio.
Máfia. Banditismo. É que em tais sociedades prolifera um sentimento generalizado da falta de ter ou de ser.
Mesmo o sujeito bem situado socialmente não pode gozar de seus bens diante do "olhar ávido". O olhar pidão dos
pobres e miseráveis. De olho na substância do prato de comida. Estranha simbiose da fome com o olho gordo. A paranóica sociedade brasileira não consegue
gozar em nenhum de seus escalões sociais: tanto faz em cima quanto embaixo.
O excelente livro de Antônio Quinet é a
prova de que, por estas bandas, Lacan está sendo deglutido antropofagicamente,
isto é, assimilado em razão do nosso espaço e do nosso tempo.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac São
Paulo), entre outros.
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