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Coisas, lugares e pessoas da poesia
A Cidade e os Livros
80 págs., R$ 20,00
de Antonio Cicero. Editora Civilização Brasileira (r.
Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).
Noemi Jaffe
especial para a Folha
Na poesia como na vida, o fora
pode ser bem melhor do que o
dentro. E talvez os mistérios
não estejam todos do lado de
dentro, no desconhecido, no íntimo ou
no abstrato, como nos querem fazer
acreditar o pensamento conceitual, a psicanálise, a religião. Eles podem mesmo
estar do lado de fora, aqui, entre nós.
No "rio que corre em torno deste mundo"; no "país das maravilhas que fica do
lado de fora", por onde se chega através
de saídas e não de entradas, saídas que ficam "à orla do pensamento" (como o rio
que corre em torno do mundo).
Não a "merda do poeta" nem o cerne,
pois que em nós "tudo é roupagem".
Mas "a visão oblíqua do moreno que
olha os tênis na vitrine"; "os passageiros
sombrios dentro de um ônibus, vistos à
contraluz"; a gratuidade das "luzes cinéticas das avenidas", "o vulto ao vento das
palmeiras" e o "eterno espaço infinito
dos silêncios que nada dizem" e que, sobretudo, "nada precisam esclarecer".
Matéria de esquecimento
Em "A
Cidade e os Livros", de Antonio Cicero, a
matéria da poesia e da vida pode estar no
esquecimento, e não no luto. E é o esquecimento, por incrível que pareça, que nos
permite viver com intensidade e coragem o agora, tempo em que se produz a
poesia: "Sê por um bom tempo o que te
tente/ e para sempre nada". Já o luto é
tempo e linguagem da lembrança, do
que não está e nem é e que, portanto, não
lança luzes, mas sombras.
O segredo pode ser deixar de lado ou
para dentro o que não é e nem se vê,
olhar só para o fluxo, para a própria mutação, para o vir a ser -também aí pode
ser a morada da perplexidade. Ser "coisa
entre coisas", ver as coisas, os lugares e as
pessoas, como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Don'Ana, Francisca.
O maravilhoso de Don'Ana é só (e tanto)
ela ser Don'Ana, na "exemplaridade esplêndida de sua solidez".
De tanto perfurarmos as coisas, iludimo-nos acreditando-nos proprietários
delas, quando elas, perfuradas, cada vez
nos pertencem menos. Talvez para voltarmos a vê-las sejam necessários mais
momentos de distração, quando ainda é
possível esbarrar acidentalmente nas
coisas e de súbito vê-las como pela primeira vez. E aí pertencer não porque se
possui, mas porque se é possuído. Conseguir pertencer à cidade e aos livros no
momento súbito em que, "anônimo entre anônimos" (coisa entre coisas) não se
pertence a eles.
É assim que se sai -e não se entra-
desse livro de Antonio Cicero. Pertencendo a ele e ele a nós no momento mesmo em que não nos pertencemos. Sem
querer, quando vimos, e como no poema
"Esse Amante", vemo-nos "compenetrados e entregues a um gozo que quiçá
se finge".
Noemi Jaffe é mestre em literatura brasileira e
autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha).
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