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Documentos preservados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro mostram a confiança que o escritor depositava no socialismo e escancaram a intensa perseguição política de que foi vítima
MEMÓRIAS DE UM MILITANTE STALINISTA
Menos de uma semana após desembarcar
preso do navio "Manaus", que o levara de
Recife para o Rio de Janeiro, Graciliano Ramos foi obrigado a "tocar piano", como define o jargão policial. Recolhido à Casa de Detenção, imprimiu as dez digitais na ficha da Delegacia Especial de
Segurança Política e Social, o coração da então temida
Polícia Civil do Distrito Federal. Anotou a profissão,
funcionário público, e o endereço, rua da Caridade, 167,
na capital alagoana. Era o dia 20 de março de 1936.
Treze anos depois, em 16 de abril de 1949, Graciliano
teve novamente de besuntar os dedos na tinta e teclar
mais uma ficha. Desta feita, a iniciativa de procurar a
polícia fora sua: a lei exigia atestado de ("bons") antecedentes para a emissão de passaporte. Haviam mudado a
ocupação, agora escritor e jornalista, e o local de moradia, rua Belisário Távora, 480, bairro carioca de Laranjeiras. Como antes, recusou-se a declarar a religião (não
tinha) e deixou em branco os espaços destinados a informações sobre apego à bebida e ao jogo.
Deve ter sido uma provação. Desde a viagem compulsória no porão do "Manaus", passando pelo Pavilhão
dos Primários da Casa de Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), de volta à Casa
de Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção,
Graciliano adquirira ojeriza ao "piano". Os dez meses
em cana (março de 1936 a janeiro de 37) renderiam a
obra póstuma "Memórias do Cárcere", que o autor começou a escrever em 1946 e deixou inconclusa, sem o
capítulo derradeiro.
"No dia seguinte, depois do café, vieram buscar-nos e
ainda uma vez nos catalogaram", contou no livro. "Novas fotografias, novas impressões digitais em fichas. Estupidez. Imaginariam que as nossas caras eram outras,
que os nossos dedos se transformavam, deixavam no
papel marcas diferentes das primeiras?"
Prontuário 11.473
Não se sabe se foi coincidência
ou se um agente da polícia política, humilhado pela eloquência da lógica de Graciliano, caiu em si e limpou os
fichários da repartição, mas sobrou uma única ficha dos
tempos de prisão do escritor alagoano. Além da de março de 1936, preservou-se a de abril de 1949.
As duas fazem parte do prontuário 11.473, instaurado
em 1936 e alimentado por espiões e burocratas até depois da morte de Graciliano Ramos. O prontuário, uma
pasta feita em cartolina, amarrada por dois cordões e
recheada de documentos, integra o acervo das extintas
polícias políticas do antigo Distrito Federal, do extinto
Estado da Guanabara e do Estado do Rio (até 1983,
quando a seção dedicada à vigilância dos adversários
políticos dos governos de plantão foi fechada).
O material, mais conhecido como "o arquivo do
Dops" -das iniciais de Departamento de Ordem Política e Social, o principal órgão estadual de repressão aos
oposicionistas durante a ditadura militar (1964-85)-,
está sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro. Foi para lá na primeira metade dos anos
1990, quando os documentos secretos, mantidos em sigilo por décadas, passaram a ter o acesso legalmente
permitido. Parte do baú de Graciliano foi exposta em
1992 na Biblioteca Nacional. Parte permanecia desconhecida. O Mais! consultou-o ao longo de três semanas.
O prontuário 11.473, seu anexo com uma alentada coleção de recortes de jornal com artigos de autoria e a
respeito de Graciliano, a pasta do fundo documental
DPS com a notação D. 1.667 e relatórios avulsos em outras 25 pastas dissecam, meio século após o autor de
"São Bernardo" (1934) morrer abatido pelo câncer,
uma das facetas essenciais da sua trajetória: a de fidelíssimo membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro),
que ocupou seus últimos dez anos de vida num disciplinado ativismo sob monitoramento das rédeas curtas do
aparelho partidário. No pós-guerra, vivia o auge do
prestígio entre seus pares o tirano soviético Josef Stálin
(1879-1953), tido por fiéis mundo afora, no Brasil associados ao PCB, como "guia genial dos povos".
O escritor e o militante
A reconstituição do itinerário stalinista de Graciliano Ramos, proporcionada pela garimpagem de registros históricos no Arquivo Público do Rio de Janeiro, não surpreende pela filiação
partidária, jamais ocultada, mas pela abnegação da militância de quem manteve sua literatura a salvo das imposições do PCB.
Graciliano era, nesse aspecto, o reverso do seu correligionário Jorge Amado (1912-2001). O escritor baiano
não teve pudor em fazer de sua arte instrumento de mitificação, ao biografar o dirigente comunista Luiz Carlos Prestes ("O Cavaleiro da Esperança", 1942) ou tratar
da refrega política intestina da esquerda, em "Os Subterrâneos da Liberdade" (1954). O alagoano, no que parece um exercício rigoroso de separação da personalidade artística da personalidade política, à medida que
elas eventualmente possam não se confundir, logrou
resguardar a independência criativa.
"Memórias do Cárcere" é um exemplo vigoroso. Ao
ser detido em 1936 sob a infundada acusação -nunca
formalizada- de ter conspirado no malsucedido levante comunista de novembro do ano anterior, Graciliano Ramos ainda não formava nas fileiras do PCB. A
despeito de minúcias na descrição de numerosos episódios, o arquivo dos arapongas não esclarece a data da adesão. Formalmente, estabelece a filiação em 1945, ano em que o partido retornou ao soluço histórico de legalidade que se estenderia somente até 1947.
Quando se põe a redigir as lembranças da cadeia, Graciliano já era comunista no mínimo desde um ano antes, quando perfilava na célula (unidade de base do partido) batizada Raimundo Rodrigues -passaria depois
pela Abelardo Nogueira e a Teodoro Dreisser, conforme a espionagem policial.
Honestidade intelectual
A narrativa típica de
militantes da época cumpriria a cartilha do realismo socialista, suposta escola estética que asfixiou a arte na
União Soviética na era de Stálin (1924-53) ao subordiná-la à política.
Não foi o que Graciliano fez em "Memórias do Cárcere", que por pouco não recebeu o título de "Cadeia". O
que na pena de outro militante poderia ter sido um
amontoado de glorificações de comunistas encarcerados do primeiro governo (1930-45) de Getúlio Vargas
(1882-1954), em Graciliano foi revivido com honestidade intelectual.
Há no livro palavras generosas sobre aqueles que penavam nas celas, muitos submetidos às torturas mais
desumanas. Contudo o autor não se propôs a promover
personagens ao gosto da conveniência política. Alguns
militares presos, co-partícipes da chamada Intentona
Comunista, foram vistos com desprezo. Graciliano dispensou eufemismos para amenizar a indigência dos escritos de companheiros de infortúnio que lhe eram dados para comentar.
A má vontade dos prisioneiros com os discursos em
portunhol do argentino Rodolfo Ghioldi, integrante da
direção da Internacional Comunista, era consequência
de "patriotismo idiota". E o nacionalismo exacerbado
era um dos pilares da orientação pecebista -isso o escritor não disse, nem precisava, de tão ululante.
O mesmo Ghioldi, herói comunista de projeção mundial, acarinhado com palavras simpáticas, não era um
super-homem. Chegou a "andar mal, silencioso, sem
apetite". Até os dentes caíam. O que certas memórias
seletivas apresentavam como inquebrantável aliança
solidária dos internos se tratava de ambiente tenso, com
altercações resolvidas a tapa. Um revolucionário trotskista, militante tão ou mais asqueroso que os fascistas,
segundo a doutrina stalinista, convivia fraternalmente
com Graciliano. "Esses desacordos me deixavam perplexo", recordou.
Não é à toa que foi de perplexidade a reação de setores
do PCB a "Memórias do Cárcere". Há testemunhos sobre militantes de base que escondiam os volumes da estante diante de chefes do partido. Provavelmente não
foi coincidência a edição póstuma -Graciliano interrompeu a redação das memórias incômodas para muitos camaradas e não a retomou a tempo. Escapou de
presenciar as reações contrariadas.
Em vez de concluir o livro, escreveu "Viagem", crônicas sobre sua passagem pela União Soviética e outros
países. É a maior concessão ao stalinismo em sua obra,
embora tenha se acautelado, assegurando que o seu papel não seria o de divulgador. Seus romances ("Caetés",
"São Bernardo", "Angústia" e "Vidas Secas") foram
editados de 1933 a 1938. No período intenso de militância não escreveu mais nenhum. A ficção minguou.
Mesmo assim, resguardou a liberdade artística e evitou que seus contos, crônicas e memórias se degradassem como peças de apologia do partido. É por isso que
seus anos finais, recuperados no Arquivo do Rio, impressionam. A começar por alguns artigos.
Esclarecer divertindo
"O Partido Comunista e a
Criação Literária" saiu num periódico comunista em
maio de 1946. Um agente do setor de informações recortou-o e colou-o numa folha-padrão da Divisão de
Polícia Política e Social. Graciliano negava existir ingerência da agremiação a que pertencia na elaboração artística de seus filiados: "É necessário asseverarmos que
o Partido Comunista nenhum dano causa à produção
literária. (...) Tolice imaginar que lhes vão torcer idéias,
impor o trabalho desta ou daquela maneira. (...) E é claro que não haveria conveniência em fabricar normas
estéticas, conceber receitas para a obra de arte (...)".
A ata de uma reunião comunista de 22 de outubro de
1945, apreendida pela arapongagem, mostra como, na
realidade, o partido concebia o lugar das artes.
O encontro juntara os secretários (coordenadores) de
três células do setor cultural. Planejou-se um concurso
de esquetes. "Esses trabalhos deverão ter caráter doutrinário político. Por esse meio a massa será esclarecida ou
politizada divertindo-se", assinalou a ata. Sugeria-se
uma comissão julgadora com quatro pessoas, incluindo
Graciliano.
O realismo socialista impregna um bilhete datilografado que foi enviado de Moscou em julho de 1952 por
um provável russo de nome Boris. O signatário comemora o que afirma ter sido a boa receptividade de um
"trecho do vosso romance" (capítulo de "Vidas Secas")
publicado na revista "Ogoniok". Em seguida, pede: "Ficarei agradecido se nos enviardes um conto dedicado à
vida atual dos trabalhadores brasileiros". A polícia se
apropriou do bilhete, mas não apurou se a encomenda
foi atendida.
Meses antes, Graciliano participara do desfile de 1º de
maio em Moscou, com a presença de Stálin, para quem
em 1949 despachara uma mensagem de parabéns pelos
70 anos de idade.
Na mesma viagem, foi recebido pela União dos Escritores Soviéticos, conforme boletim do Dops. A mesma
entidade (organização do poder stalinista para reprimir
manifestações artísticas julgadas daninhas ao Estado),
bem como a congênere polonesa, enviaria saudações
nos 60 anos de Graciliano, festejados numa cerimônia
no Rio. Na ocasião, o secretariado do partido saudou o
escritor que combatia "ao lado das forças que em nosso
país lutam pela paz e a independência nacional".
O "camarada Graciliano Ramos", que honrava "as
melhores tradições democráticas da nossa intelectualidade", de acordo com a nota do PCB, fora uma das estrelas da "Comissão Promotora dos Festejos do Cinquentenário de Prestes", o secretário-geral do partido.
O grupo da "Diretrizes"
O que torna o acervo do
Rio ainda mais valioso é a sua composição conjugada:
foi guardado tanto o que o Estado produziu sobre Graciliano como o que era da lavra dos próprios comunistas e foi apreendido por espiões ou em batidas policiais.
A ficha do escritor não conta nem o local do seu nascimento em Alagoas (Quebrangulo, um paroxítono que
se costuma adornar erradamente com um acento circunflexo) nem sua passagem pela Prefeitura de Palmeira dos Índios (AL). Diz que foi demitido da direção da
Instrução Pública de Alagoas, em 1936, "em virtude de
atividades subversivas". Entregue em 14 de março daquele ano às autoridades no Rio, foi libertado em 13 de
janeiro de 1937.
No princípio da década de 1940, sua frequência à sede
da revista "Diretrizes", junto de Álvaro Moreira, Joel
Silveira, José Lins do Rego e outros "conhecidos comunistas e elementos de esquerda", não passou despercebida a um agente infiltrado.
O olhar da polícia política sobre Graciliano e os outros
comunistas cresceu a partir de 1945, quando Getúlio
Vargas, o ex-ditador convertido pelo PCB em aliado, foi
apeado da Presidência. A candidatura a deputado constituinte pelo partido em Alagoas mereceu referência
marginal.
Em 139 registros acumulados em seu fichário, cada
um correspondente a um documento, o grosso se detém na mais importante tarefa que o PCB destinou ao
escritor: a animação da "campanha pela paz", iniciativa
mundial conjunta, no contexto da Guerra Fria, de todos
os partidos ligados ao Kremlin.
Graciliano foi legalmente dono e editor do jornal
"Partidários da Paz", jurado dos "Prêmios da Paz", fundador e conselheiro do "Movimento Brasileiro dos Partidários da Paz", diretor da "Organização Nacional de
Defesa da Paz e da Cultura", participante do Congresso
dos Partidários da Paz, em São Paulo, e delegado eleito
para o 2º Congresso Mundial dos Partidários da Paz.
Presidente da Associação Brasileira de Escritores, fez
dela uma das entidades mais empenhadas no "combate
pela paz". Em todas as frentes, graças ao prestígio como
escritor e à missão determinada pelo PCB, ocupou lugar
de destaque.
Por causa da campanha, o Dops de São Paulo abriu
inquérito em 1949 para investigar "signatários de documentos relacionados a atividades comunistas rotuladas
de paz". Entre os alvos da perseguição, Graciliano, o
também escritor Orígenes Lessa e o arquiteto Oscar
Niemeyer.
Maravilhas da URSS
Ao se descobrir ostensivamente seguido pela polícia política, enviou protesto ao
Ministério da Justiça. Não diminuiu o ritmo militante,
em companhia da segunda mulher, Heloísa Ramos, que
viveria até 1999. Em 4 de setembro de 1952, ela proferiu
a palestra "Impressões de uma Viagem à Europa". Um
"observador" da polícia escreveu que havia 11 assistentes. "A conferência se transformou em conversa em família, sobre as maravilhas da União Soviética", relatou.
Já doente e internado numa casa de saúde do Rio,
Graciliano, com um cigarro entre os dedos, deu entrevista ao jornal "Imprensa Popular", órgão extra-oficial
do PCB. Desmentia notícia de um livro editado em Portugal sobre mudança de suas convicções. "Quando passei por Lisboa eu ia a caminho de Moscou, da União Soviética, realizar um velho sonho. Tudo o que vi reforçou
a minha confiança no socialismo, na causa da paz", disse. No mesmo dia em que a entrevista foi publicada, 5
de março de 1953, Stálin morreu. Graciliano morreria
duas semanas depois, dia 20, aos 60 anos. Em 1956, o
congresso do PC soviético denunciaria formalmente ao
mundo os crimes de Stálin, que a rigor já eram sabidos
por quem queria saber.
Cinquenta anos após o desaparecimento de um dos
maiores talentos da literatura brasileira, o mestre do
texto enxuto como seu próprio corpo, sobraram ainda
outras preciosidades da sua história. Como a mensagem enviada por rádio de Maceió e recebida no Rio em
12 de janeiro de 1937, na qual o secretário do Interior de
Alagoas informou não ver "inconveniente" na "liberdade [de" Graciliano Ramos". Restaram três fotografias:
uma do escritor preso; uma dele taciturno, dedicada a
Ruy Santos, fotógrafo oficial do PCB na década de 1940
e provável autor da imagem; e uma terceira, sem crédito, do alagoano escrevendo à mão. No balanço geral, o
inventário político de quem, ao refletir sobre a liberdade, escreveu: "Começamos oprimidos pela sintaxe e
acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e
Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a
gramática e a lei, ainda nos podemos mexer".
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