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O COTIDIANO MENOR DE ANGÚSTIA
por Ferreira Gullar
Li o romance "Angústia", de Graciliano Ramos, aos 20 anos e
quando ainda vivia em São Luís.
Estava descobrindo a literatura e
buscava conhecer tudo o que me diziam ser importante. Já havia lido alguns romances de Machado de Assis e
de Aluísio Azevedo, meu conterrâneo. A leitura de "Angústia" causou-me um impacto.
Hoje, 50 anos depois, tento entender as razões daquele impacto e percebo que a primeira delas foi o estilo,
áspero e rude, do escritor. A cada frase, o narrador-protagonista ia se revelando uma personalidade ácida, que
desconsiderava os ditos valores sociais, os quais não passavam, para ele,
de mera hipocrisia.
Hipócritas eram todos, inclusive ele
mesmo, que ganhava a vida alugando
sua pena para redigir artigos venais.
Um pobre diabo, que morava mal,
numa casa que ele dividia com ratazanas e uma empregada surda.
Mas eis que vem morar na casa ao
lado um casal de velhos com uma filha muito jovem e tentadora. Os risinhos dela, suas coxas, seus cabelos
louros, suas frases provocativas viraram a cabeça daquele homem casmurro e lhe acenderam uma esperança de vida.
Esperança que durou pouco, é verdade, porque a jovem sedutora, mais
interessada em meias de seda e sapatos da moda, logo o trocaria por outro, com mais grana e menos caráter.
Banhos de Marina
Reli o romance, agora. A força do estilo se
mantém e a narrativa na primeira
pessoa, entre sarcasmos e resmungos,
nos arrasta inapelavelmente até o desfecho brutal.
Verifico então: uma das coisas que
mais me fascinaram na primeira leitura, e se confirmou agora, foi a presença viva, no romance, do cotidiano
menor daquelas pessoas anônimas,
vivendo em fundos de quintal, a lavar
e a estender roupas, a encher dornas
de vinho, como a empregada que escondia moedas na terra do quintal. E
os banhos de Marina, a mocinha sedutora, que ele acompanhava de seu
banheiro pegado ao dela, ouvindo-a
cantarolar, ensaboar-se e lavar-se
com a água que escorria cantando por
seu corpo e sumia no ralo. É nestes e
em outros detalhes, nestas e em outras particularidades, que reside o caráter brasileiro, permanente, deste romance que se incorporou de vez à
nossa literatura.
Não menos irresistível é a parte do
livro que narra a frustração do personagem e sua revolta diante da traição
que sofrera. A partir daí, suas lucubrações se misturam a alusões aos ratos
que infestam a casa e que se infiltram
por toda parte, no guarda-comida, no
quarto de dormir, na estante de livros
("eles mijam na literatura"), e tudo
roem, antes de morrerem em meio
aos papéis, às roupas, aos mantimentos. A presença desses animais repugnantes, que lhe fogem ao controle, parece penetrar a própria alma do personagem, misturar-se ao seu ódio e à
sua obsessão homicida.
A releitura serviu para convencer-me de que o romance nada perdeu
com o passar dos anos. O estilo, o modo de narrar, de construir os personagens e fazer caminhar a ação dramática (que esse é o caso, em "Angústia"),
são plenamente atuais e sem dúvida
mais eficazes e intensos que o de muitos romances de agora.
E talvez essa atualidade resida no fato de que Graciliano, na sua aparente
rudeza, comovia-se com o desamparo
de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio desamparo e de
todo ser humano, "este bicho da terra
tão pequeno".
Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de,
entre outros, "Toda Poesia" (ed. José Olympio)
e "Argumentação contra a Morte da Arte" (ed. Revan).
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