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A LIBIDO DA ESCRITA NAS MEMÓRIAS DO CÁRCERE
por Luiz Costa Lima
O fracasso do levante comunista de fins de
1935, com as sublevações em Natal, no Recife e no Rio, justificara a repressão movida
por um governo Vargas então inclinado aos
fascistas. Em março de 1936, o diretor da Imprensa
Pública de Alagoas é demitido e, logo depois, preso.
Inicia-se um período doloroso, incerto e decisivo na
vida, até então mediocremente normal, de Graciliano
Ramos.
Que envolvimento teria ele com os perseguidos?
Não era membro do Partido Comunista (a que só se
filiaria em 1945); embora admirasse Prestes, dele pouco sabia, e sua conduta na cadeia o mostrava reticente
quanto às decisões dos coletivos ou suspeitoso da maneira como eram elas alcançadas e logo desfeitas. Talvez o motivo de sua prisão tenham sido, como diria
seu futuro advogado Sobral Pinto, seus romances; por
certo, a denúncia, nestes momentos particularmente
bem-vinda, de alguém que se julgara desfavorecido.
Apanhado em casa, é levado, ainda com certa cerimônia, em carro oficial, para a estação de trem que o
conduzirá a Recife. O encontro com sua mulher já diz
muito daquele ser aparentemente e tão-só secarrão.
Pois é sob palavras ásperas que se oculta o afeto de
Graciliano.
Complicações
No Recife, a situação começa a se
complicar. Em vez de curta, como a princípio supusera, a cadeia se prolonga e culmina no embarque em
um velho navio, que tem o Rio por destino. Misturado a centenas de outros -participantes, já torturados, da insurreição de Natal, inocentes, vagabundos,
ladrões, até um fanático religioso, delatores e acusados de delação-, ele é lançado na "furna medonha",
o porão do "Manaus". "Rostos esmaecidos", "prostrações dolorosas", ali, Graciliano, com 43 anos, desajeitado, autocrítico, saído havia pouco de uma operação não de todo cicatrizada, conhece "o máximo requinte de perversidade".
Em certo momento, crê que a loucura dele se apodera. Vence-a, contudo. Mais forte que sua denúncia
da estupidez do "fascismo tupiniquim", só a acidez do
juízo que tem de si próprio: "Eu vivera numa sombra
razoável, quase anônimo: dois livros de fôlego curto
haviam despertado fraco interesse e alguma condescendência desdenhosa. Era um rabiscador provinciano detestado na província, ignorado na metrópole".
Seu juízo sobre o valor literário de seu terceiro livro,
"Angústia", publicado enquanto esteve preso, não é
diverso; muito menos sobre sua postura política:
"Achava-me fora das classes, num grupo vacilante e
sem caráter (...). Repelido em cima e em baixo".
Aprende contudo a se virar; com a ajuda dos que por
ele interferem e um tanto de sorte, sobrevive.
Sua principal ligação com a vida era a escrita. A escrita é sua libido -aquela que o anafrodisíaco a ser
misturado ao café, no "pavilhão dos primários", não
inibirá. Tão logo começa a terrível travessia, se põe a
tomar notas, na expectativa de um dia formular o que
presenciava. A prisão lhe abria uma experiência inaudita -nenhum de seus romances conterá algo semelhante. Duas serão suas consequências: a incomparável ampliação da variedade de tipos que encontra na
espécie humana, e a sensível diminuição de seu tempo de vida -morrerá aos 60 anos.
Inesperada solidariedade
Na furna do porão,
sob o calor semelhante ao de uma caldeira, sem escolha ante alimentos contra os quais sua garganta se estreita, pisando em um chão imundo pelo mijo que se
espalha com os balanços do barco, Graciliano mantém, mesmo tendo de se desfazer de suas notas, a lucidez com que recordará o que viveu. São situações não
só macabras, mas também de inesperada solidariedade humana. Esta já o impressionara no quartel de Recife, onde um capitão, seu carcereiro, sabendo o que o
espera, lhe oferece uma parte de sua poupança, como
empréstimo a ser resgatado algum dia. Comparar o
que ali se passa com o "Inferno" dantesco só não será
repugnante se acrescentarmos que os castigos não se
respaldam por nenhuma espécie de justiça, por mesquinha que fosse.
Ainda que trôpego e há vários dias sem alimento, ao
chegar ao Rio o preso é transferido para o "pavilhão
dos primários". O leitor que, 30 anos depois, tenha tido experiência comparável, poderá se dizer que a repressão ainda tinha muito a aprender. De fato, o "pavilhão", comparado à travessia no "Manaus", pareceria uma colônia de férias. Mas não era bem assim. Os
percevejos e os delatores substituíam sem desdouro o
esmero da técnica repressiva. De qualquer modo, seria inútil tentar descobrir uma lógica entre o primeiro
transporte, o estágio entre os primários, onde estão figuras como Olga Prestes, o argentino Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata e a experiência horripilante da "colônia correcional".
Nada de tão pavoroso se escreveu entre nós. A polícia de Felinto Müller podia não ter requintes, mas sabia explorar sua bestialidade. A maneira mais incisiva
de defini-la está nas palavras do guarda que recebe a
leva em que Graciliano é trazido: "Aqui não há direito. Escutem. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui
não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm corrigir-se, estão
ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer". Mas,
embora outra vez não consiga tragar o alimento distribuído, as pernas entorpeçam e o talho da operação
doa no baixo ventre, Graciliano sobrevive. Outra vez,
tomara notas e, ao sair, terá de desfazer-se delas. Mas
a perda não importará ante a força do que presencia e
fixa. Força até do que pareceria insignificante: "(...) A
violência organizada era bem precária: os agentes dela se bandeavam, nos momentos difíceis vinham cochichar-nos informações e conselhos".
Dignos ou falastrões
O que muito menos impede que recorde a crueldade absurda, a pusilanimidade
bestial, bem como a inesperada grandeza de sentenciados e ladrões comuns. Em sua frase seca, Graciliano tem na escrita o meio de formular a variedade do
homem. Algozes, vagabundos ou pessoas que perderam o que tinham em defesa de suas convicções podem ser de igual dignos ou falastrões.
Quanto tempo teria Graciliano passado na "colônia
correcional"? Pelo que a leitura deixa presumir, pouco mais de uma quinzena. É pelo esforço de sua mulher, Heloísa, e pelo empenho do amigo José Lins do
Rego que consegue outra transferência. A "casa da
correção", em que completará 11 meses de prisão sem
julgamento, é comparável ao "pavilhão dos primários". Em troca, é aí que presenciará um dos fatos
mais ignóbeis do governo Vargas: malgrado o protesto indignado dos presos, a entrega de Olga Prestes e
Elisa Berger aos agentes da Gestapo [a polícia secreta
nazista".
Pouco depois, Sobral Pinto, que já defendera Olga e
Elisa, o tirará da prisão. Graciliano, conforme declara
no início da obra, redigirá as "Memórias do Cárcere"
dez anos depois de ser libertado.
Mas não chega a começar seu último capítulo. A
morte aproveitara para afiar sua foice. Só não tivera
tempo de evitar seu testemunho. Ou será que ela própria, a exemplo dos guardas, fingia não se dar conta
do que rabiscava o escritor?
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica
(PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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