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O HERÓI POR CONTRASTE DE CAETÉS
por Luis Bueno
A história da publicação de
"Caetés", romance de estréia
de Graciliano Ramos, é uma
passagem curiosa da história
da literatura brasileira. Em 1929 o escritor alagoano se tornara conhecido
nos meios literários do Rio de Janeiro
pela divulgação dos famosos relatórios
que escreveu dando contas de sua
atuação como prefeito de Palmeira dos
Índios. Em 1931 o poeta Augusto Frederico Schmidt fundou uma editora e,
já na contracapa de seu primeiro lançamento -"Oscarina", de Marques
Rebelo-, anunciava a publicação de
"Os Caetés", romance de Graciliano
Ramos.
No entanto o público teve que esperar até a segunda quinzena de dezembro de 1933 para poder lê-lo. Alguns
acusaram Schmidt, que estava em terreno político oposto ao de Graciliano,
de retardar sua publicação. Outros dizem que, na desorganização que era a
Schmidt Editora, os originais ficaram
desaparecidos por mais de um ano.
Seja qual tenha sido a causa do atraso
na publicação, no final de 1933, depois
dos lançamentos de "Cacau", de Jorge
Amado, e "Os Corumbas", de Amando
Fontes, o público e a crítica esperavam
outra coisa de um homem de esquerda
como Graciliano Ramos. O crítico pernambucano Aderbal Jurema sintetizou bem a decepção causada por "Caetés", considerando-o "um livro somente humano", "completamente
alheio à desigualdade de classes na sociedade e fora da órbita da literatura
revolucionária do momento".
Apurada técnica narrativa
É claro que isso não significa que o romance tenha sido considerado ruim, e
Jorge Amado, no auge de seu prestígio
literário, chegou a dizer que considerava "Caetés" a melhor de todas as estréias daquele início de década. Mas se
percebe uma tendência de "Caetés" ter
sido subvalorizado desde seu lançamento, o que depois se intensificou, à
medida que Graciliano foi lançando livros fantásticos, que acabaram fazendo sombra àquele romance de estréia.
E "Caetés" é um livro admirável e
merecedor de leitura por mais de um
motivo. Em primeiro lugar porque o
texto único de Graciliano Ramos já está lá -aliás, já estava em alguns artigos
que, ainda adolescente, o escritor publicara.
Em segundo lugar, pela apurada técnica narrativa. Antonio Candido notou o quanto "Caetés" ainda se liga ao
pós-naturalismo, àquela altura bastante decadente. Mas Graciliano faz desvios em relação ao modelo naturalista
que dão a seu romance um feitio especial. O mais evidente desses desvios é a
opção pelo narrador em primeira pessoa, que o naturalismo evitava. Com
esse deslocamento, o romance se constrói com um olho no espaço coletivo
da pequena Palmeira dos Índios, com
sua galeria de tipos curiosos, e outro no
caso individual de João Valério, o protagonista da história, visto, por assim
dizer, de dentro.
Papel ambíguo
Em terceiro lugar,
porque essa constituição narrativa
permite a "Caetés" ter uma riqueza temática que poucos romances brasileiros de seu tempo tinham. Note-se, nesse sentido, que a figura de João Valério
representa a problematização, em alto
grau de complexidade, do ambíguo
papel do intelectual naquele momento
em que o país passava por fortes transformações.
Alguns críticos viram um sinal de
grandeza de caráter nas inclinações intelectuais desse medíocre guarda-livros que colabora no jornal editado
pelo padre da cidade e que durante cinco anos luta para concluir um romance
sobre os índios caetés sem nunca conseguir sair do segundo capítulo.
Mas é possível ver muito menos do
que isso. João Valério, que numa rápida passagem nos informa ter tido algumas posses, sente-se inferiorizado na
posição subalterna que ocupa -ainda
que participe da vida social da cidade.
Não tendo mais nada, nem dinheiro
nem talento, qual o caminho que lhe
resta para buscar algum tipo de prestígio social? Tornar-se respeitável pela
atividade intelectual.
Assim, quando pensa no livro, tudo o
que lhe vem à mente é a imagem de sua
exposição nas livrarias e as palavras
que se diriam a seu respeito. Diante das
dificuldades que tem pela completa ignorância sobre o assunto que escolheu,
facilmente desiste, adiando seu trabalho e, portanto, sua glória. Não é à toa
que sua vocação literária desaparece
sem deixar vestígios assim que, por um
golpe do destino, acaba se tornando
sócio da casa comercial em que trabalhava. O prestígio social chegou e basta: não é preciso buscar derivativos na
literatura. Nem mesmo Luísa, a mulher do patrão, por quem se apaixonara, desperta-lhe interesse.
Dupla estreiteza
Dessa forma,
João Valério completa, por contraste, a
trajetória de fracasso dos heróis posteriores de Graciliano, Paulo Honório,
Luís da Silva e Fabiano. Afinal ele é o
único que consegue o que deseja
-que vence.
Mas essa vitória só é possível porque,
no fundo, nada o separa dos valores da
comunidade em que vive.
Na dupla estreiteza -pessoal e do
meio-, tornar-se proprietário compensa a queda social anterior e ponto
final. Haverá mesmo vitória nisso?
"Caetés" tem importância no conjunto da ficção de Graciliano Ramos
também como demonstração do beco
sem saída que a ação isolada representa nos livros desse grande romancista.
Luis Bueno é professor de literatura brasileira
na Universidade Federal do Paraná.
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