São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004 |
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+ autores AMPLIAÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA ESCONDE PROJETO DE CIVILIZAÇÃO CALCADO NA GEOPOLÍTICA DOS EUA, QUE ACENTUA O RACISMO ECONÔMICO O espelho distorcido
Slavoj Zizek
Na Eslovênia, os nacionalistas de direita acusam a coalizão governante de centro-esquerda de, apesar de apoiar publicamente a entrada na Otan (aliança militar ocidental) e a campanha antiterrorista dos Estados Unidos, a estar secretamente sabotando, participando por motivos oportunistas, e não por convicção. Ao mesmo tempo, porém, acusam a coalizão governante de querer minar a identidade nacional eslovena ao defender a plena integração da Eslovênia ao capitalismo global ocidentalizado e assim afogar os eslovenos na cultura pop americanizada contemporânea. A idéia é a de que a coalizão governante apóia a cultura pop, o entretenimento idiota na TV, o consumo irracional etc. para transformar os eslovenos em uma multidão facilmente manipulável, incapaz de reflexões sérias e de um posicionamento ético firme. Em suma, o motivo subjacente é o de que a coalizão governante representa "a trama liberal-comunista": a imersão irrestrita e impiedosa no capitalismo global é vista como a última trama obscura dos ex-comunistas, permitindo-lhes manter o controle secreto do poder. Ironicamente, a nova ordem socioideológica emergente que esses nacionalistas conservadores lamentam parece a descrição feita pela antiga Nova Esquerda da "tolerância repressiva" e da liberdade capitalista como o modo de aparecimento da não-liberdade. Furiosa perplexidade Essa ambigüidade da atitude européia oriental encontra sua contrapartida perfeita na mensagem ambígua do Ocidente aos países pós-comunistas. Lembrem a pressão dupla que os Estados Unidos exerceram sobre a Sérvia no verão de 2003: os deputados americanos ao mesmo tempo exigiram que o governo sérvio entregasse os suspeitos de crimes de guerra ao Tribunal de Haia (de acordo com a lógica do império global, que exige uma instituição judicial global transnacional) e que assinasse o tratado bilateral com os Estados Unidos, obrigando a Sérvia a não entregar a nenhuma outra instituição internacional (isto é, o "próprio" Tribunal de Haia) cidadãos americanos suspeitos de crimes de guerra ou outros crimes contra a humanidade (de acordo com a lógica da nação-Estado) -não admira que a reação dos sérvios seja de perplexidade furiosa. E algo semelhante está ocorrendo no nível econômico: enquanto pressiona a Polônia a abrir sua agricultura à concorrência de mercado, a Europa Ocidental inunda o mercado polonês com produtos agrícolas fortemente subsidiados por Bruxelas. Como os países pós-comunistas podem navegar nesse mar de ventos conflitantes? Se existe um herói ético recente na ex-Iugoslávia é Ika Saric, uma modesta juíza da Croácia que, sem nenhum apoio público definido e em meio a ameaças contra sua vida, condenou o general Mirko Norac e seus colegas a 12 anos de prisão pelos crimes cometidos em 1992 contra a população civil sérvia. Até o governo de esquerda, temendo a ameaça de demonstrações nacionalistas de direita, se recusou a apoiar com firmeza o julgamento de Norac. No entanto, quando, em meio às ameaças da direita nacionalista de grandes tumultos públicos que derrubariam o governo, a sentença foi proclamada, nada aconteceu: as demonstrações foram muito menores do que se esperava, e a Croácia se "redescobriu" como um Estado de Direito. Foi especialmente importante o fato de Norac não ter sido entregue a Haia, mas condenado na própria Croácia -assim a Croácia provou que não precisa de tutelagem internacional. A dimensão do ato consistiu na mudança do impossível para o possível: antes da condenação, a direita nacionalista, com suas organizações veteranas, era vista como uma força poderosa que não devia ser provocada, e a condenação dura e direta foi considerada pela esquerda liberal algo que "todos queremos, mas infelizmente não podemos permitir neste momento difícil, pois levaria ao caos". Porém, depois que a sentença foi proclamada e nada aconteceu, o impossível se transformou em rotina. Se há uma dimensão a ser extraída do significante "Europa", então esse ato foi "europeu" no sentido mais patético do termo. E, se há um evento que personifica a covardia é o comportamento do governo esloveno depois da eclosão da guerra Iraque-Estados Unidos. A política eslovena tentou desesperadamente seguir um curso médio entre a pressão dos Estados Unidos e a impopularidade da guerra entre a maioria dos eslovenos. Primeiramente a Eslovênia assinou a infame Declaração de Vilna, pela qual foi elogiada por Rumsfeld e outros como parte da "nova Europa", da "coalizão dos dispostos" à guerra contra o Iraque. No entanto, depois que o ministro das Relações Exteriores assinou o documento, seguiu-se uma verdadeira comédia de negações: o ministro alegou que, antes de assinar o documento, consultou o então presidente da República e outros dignitários, que imediatamente negaram saber qualquer coisa a respeito; depois, todos os envolvidos afirmaram que o documento de modo algum apoiava o ataque unilateral dos Estados Unidos ao Iraque, mas pedia a atuação fundamental da ONU. A especificação era que a Eslovênia apoiava o desarmamento do Iraque, e não a guerra contra o Iraque. Mas alguns dias depois chegou uma má surpresa dos Estados Unidos: a Eslovênia não apenas foi explicitamente citada entre os países que participavam da "coalizão dos dispostos" como foi designada como receptora de uma ajuda financeira dos Estados Unidos a seus parceiros de guerra. O que se seguiu foi pura comédia: a Eslovênia orgulhosamente declarou que não participaria da guerra contra o Iraque e exigiu ser riscada da lista. Alguns dias depois, um novo documento embaraçoso foi recebido: os Estados Unidos oficialmente agradeciam à Eslovênia por seu apoio e ajuda. A Eslovênia novamente protestou que não se qualificava a nenhum agradecimento, recusava reconhecer-se como destinatária da carta de agradecimento, numa espécie de versão farsesca do "por favor, realmente não mereço seu agradecimento!", como se enviar seu agradecimento fosse a pior coisa que os Estados Unidos pudessem nos fazer agora... Geralmente os Estados protestam quando são injustamente criticados; a Eslovênia protesta quando recebe sinais de gratidão. Em suma, a Eslovênia se comportou como se não fosse a destinatária das cartas de elogios desmedidos -e o que todos sabíamos era que, também nesse caso, a carta realmente chegara a seu destino.
A ambigüidade dos europeus orientais, portanto, simplesmente reflete as incoerências da própria Europa Oriental. No final de sua vida, Freud fez a famosa pergunta: "Was will das Weib?" [O que quer a mulher?], admitindo sua perplexidade diante do enigma da sexualidade feminina. E uma perplexidade semelhante surge hoje, quando os países pós-comunistas entram na União Européia: em que Europa estão entrando? Durante muito tempo defendi um "eurocentrismo de esquerda" renovado. Colocando simplesmente: queremos viver em um mundo em que a única opção é entre a civilização americana e a chinesa capitalista-autoritária emergente? Se a resposta for não, então a única alternativa é a Europa. O Terceiro Mundo não pode gerar uma resistência suficientemente forte à ideologia do sonho americano; na atual constelação, somente a Europa pode fazê-lo. A verdadeira oposição hoje não é entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo, mas entre o conjunto do Primeiro e Terceiro mundos (o império global americano e suas colônias) e o Segundo Mundo restante (a Europa). A propósito de Freud, Theodor Adorno afirmou que o que vemos no "mundo administrado" contemporâneo e sua "dessublimação repressiva" não é mais a velha lógica da repressão do id e seus impulsos, mas um perverso pacto direto entre o superego e o id (impulsos agressivos ilícitos), às custas do ego. Algo estruturalmente semelhante não está ocorrendo hoje no nível político, o estranho pacto entre o capitalismo global pós-moderno e as sociedades pré-modernas, às custas da própria modernidade? É fácil para o império global multiculturalista americano integrar as tradições locais pré-modernas -o corpo estrangeiro que ele efetivamente não consegue assimilar é a modernidade européia. Jihad e McWorld são dois lados da mesma moeda; a Jihad já é McJihad. Embora a atual "guerra ao terror" se apresente como a defesa do legado democrático, ela corteja o perigo claramente percebido um século atrás por G.K. Chesterton, que, em seu "Orthodoxy", explicou o impasse fundamental dos críticos da religião: "Os homens que começam a combater a igreja em nome da liberdade e da humanidade acabam jogando fora a liberdade e a humanidade apenas para poder combater a igreja. (...) Os secularistas não destruíram coisas divinas; mas os secularistas destruíram coisas seculares, se isso pode lhes servir de conforto". Tortura O mesmo não vale hoje para os próprios defensores da religião? Quantos fanáticos defensores da religião não começaram atacando ferozmente a cultura secular contemporânea e acabaram abandonando qualquer experiência religiosa significativa? De maneira semelhante, muitos guerreiros liberais estão tão ávidos para combater o fundamentalismo antidemocrático que acabarão jogando fora a liberdade e a democracia apenas para combater o terror. Eles têm tamanha paixão por provar que o fundamentalismo não-cristão é a principal ameaça à liberdade que estão prontos para recair na posição de que precisamos limitar nossa própria liberdade aqui e agora, em nossas supostas sociedades cristãs. Se os "terroristas" estão prontos para destruir este mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros antiterror estão prontos para destruir seu próprio mundo democrático por ódio ao outro muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que estão dispostos a legalizar a tortura -a degradação máxima da dignidade humana- para defendê-la. E nessas mesmas linhas podemos perder a "Europa" por meio de sua própria defesa. Pessoas e coisas Um ano atrás, uma decisão ameaçadora da União Européia passou quase despercebida: o plano para estabelecer uma força policial de fronteira pan-européia para garantir o isolamento do território da União e assim evitar o influxo de imigrantes. Essa é a verdade da globalização: a construção de novos muros protegendo a próspera Europa da inundação imigrante. Somos tentados a ressuscitar aqui a velha oposição "humanista" marxista entre "relações entre coisas" e "relações entre pessoas": na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as "coisas" (mercadorias) que circulam livremente, enquanto a circulação de "pessoas" é cada vez mais controlada. Esse novo racismo do desenvolvido é de certa forma muito mais brutal que o anterior: sua legitimação implícita não é naturalista (a superioridade "natural" do Ocidente desenvolvido) nem mais culturalista (nós no Ocidente também queremos preservar nossa identidade cultural), mas o egoísmo econômico descarado -a divisão fundamental é aquela entre os que estão incluídos na esfera da (relativa) prosperidade econômica e os excluídos dela. O que achamos repreensível e perigoso na política e na civilização dos Estados Unidos é portanto uma parte da própria Europa, um dos possíveis resultados do projeto europeu. Não há lugar para a arrogância autocomplacente: os Estados Unidos são um espelho distorcido da própria Europa. Na década de 1930, Max Horkheimer escreveu que aqueles que não querem falar (criticamente) sobre o liberalismo também devem manter silêncio sobre o fascismo. "Mutatis mutandis", deveríamos dizer àqueles que criticam o imperialismo americano: os que não querem se envolver criticamente com a Europa também devem manter silêncio sobre os Estados Unidos. Essa, portanto, é a única questão verdadeira por baixo das comemorações autocongratulatórias que acompanham a ampliação da União Européia: a que Europa estamos aderindo? E, confrontados com essa pergunta, estamos todos no mesmo barco, a "nova" e a "velha" Europa. Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: A guerra dos nomes Próximo Texto: + livros: Tupi or not tupi Índice |
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