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Bíblia em guarani mbyá empobrece cosmologia
indígena ao ajustá-la ao universo cristão
Tupi or not tupi
Eduardo de Almeida Navarro
especial para a Folha
A recente publicação pela Sociedade Bíblica do Brasil de uma Bíblia em guarani, no dialeto mbyá, suscita uma compreensível controvérsia. Por um lado, não há dúvida de que a literatura em guarani
mbyá foi enriquecida com tal obra. É preciso lembrar, com
efeito, que o guarani mbyá não é o guarani paraguaio, possuidor de vasta literatura e com o estatuto de segunda língua oficial do Paraguai. O mbyá é guarani tribal, de literatura escassa. Torna-se, assim, tal Bíblia, o maior texto já escrito em tal dialeto, facultando longa leitura aos que nele se
alfabetizam.
Hoje, com efeito, a alfabetização das populações indígenas em suas línguas maternas e a produção de textos nelas
são fatores de sobrevivência dessas mesmas línguas, ameaçadas de extinção num mundo de dominação cultural de
matrizes norte-americanas e onde a cultura de massa atinge as populações indígenas de modo a diluir seu universo
simbólico na cultura do mundo globalizado. Nesse sentido, com a publicação dessa Bíblia, o guarani mbyá recebe
uma garantia a mais de sua sobrevivência enquanto língua
num futuro próximo.
Deslocamentos semânticos
É certo, contudo, que,
em tal Bíblia, muitos termos do guarani mbyá sofreram
deslocamentos semânticos para transmitir conteúdos distantes da primitiva cultura tribal, como são alguns conceitos do cristianismo. Cria-se uma esfera simbólica que não
é nem a dos missionários nem a do povo guarani. Não é
crível, contudo, que não esteja mais ali presente a língua
dos mbyás, acusação que já se fez também ao tupi de Anchieta, que alguns deram, falsamente, por tupi "jesuítico".
Por outro lado, o que preocupa em uma publicação de tal
gênero é a interpenetração de sistemas simbólicos que
conduz, necessariamente, nesse caso, à desagregação de
uma cosmologia tradicional e de uma religião primitiva,
criando uma esfera simbólica híbrida. Se, com ela, a língua
dos mbyás se fixa em formas literárias, a forte articulação
original do universo simbólico mbyá, já bastante alterada
diante dos contatos mais que seculares com o mundo
branco, começa a se desfazer.
Com efeito, o problema não é a transmissão do cristianismo, que apresenta, seguramente, alguns princípios universalistas, presentes em outros sistemas ético-religiosos,
como a exigência da caridade e do amor ao próximo, a justiça e a harmonia na vida social. O que é preocupante é que,
numa versão da Bíblia como essa, muitos conteúdos culturais, relativos no tempo e no espaço e nos quais o mundo
judaico-cristão se plasmou, são apresentados como universais e absolutos, utilizando-se, para isso, de um dos
mais poderosos instrumentos de nossa cultura, que é o
texto escrito.
Nesse sentido, tal empreendimento é fator de empobrecimento: a diversidade cultural da humanidade é seriamente atingida, o "outro" é visto como o "mesmo", o que
conduz a uma entristecedora homogeneização de visões
de mundo. Não é aleatório o fato de, historicamente, terem
as missões cristãs obtido bom sucesso somente no continente americano: na Ásia, sociedades letradas como a chinesa e a indiana as recusaram e, na África, o crescimento
do islã tornou lentos seus passos. Já as sociedades indígenas da América são frágeis diante dos instrumentos de dominação cultural trazidos pelos missionários, que desde os
tempos coloniais têm insistido na idéia de que os índios
são uma "tábula rasa", sem religião alguma, em que se devem imprimir os sinais da verdadeira fé.
Destruição de sistemas simbólicos
Sabemos que
os missionários do passado colonial do Brasil também
procederam a tal destruição de sistemas simbólicos tradicionais. Tais missionários não dispunham, contudo, do repertório teórico-científico de que hoje dispõe a humanidade. Como admitirmos, mais de um século depois do surgimento da ciência antropológica, que as populações indígenas atuais sejam tratadas como as do século 16? O próprio
Concílio Vaticano 2º, na encíclica "Gaudium et Spes" (parte 2, cap. 2) atentou para tal perigo: "Que fazer para que os
intercâmbios culturais mais freqüentes, que deveriam levar os diferentes grupos e nações a um diálogo verdadeiro
e frutuoso, não perturbem a vida das comunidades, não
destruam a sabedoria dos antepassados nem coloquem
em perigo a índole própria de cada povo?".
O diálogo entre culturas é, assim, segundo as palavras de
Paulo 6º, o princípio que deveria pautar a ação missionária
nos dias de hoje, mormente se considerarmos a fragilidade
dessas sociedades não letradas diante das complexas sociedades ocidentais. Como não perceber que os valores que
muitas de tais comunidades primitivas já vivem são os
mesmos que o Evangelho transmite? Segundo Egon Schaden, "na superfície da Terra não há, por certo, povo ou tribo a que melhor se aplique , do que ao guarani, a palavra
evangélica: "O meu reino não é deste mundo". Toda a vida
mental do guarani converge para o Além" (apud Clastres,
"Terra sem Mal", pág. 13). É possível, assim, ser índio e ser
cristão ao mesmo tempo. Mas seria necessário que os não-índios o permitissem.
Eduardo de Almeida Navarro é professor de tupi antigo e de literatura
de viagem na Universidade de São Paulo. É autor de "Método Moderno de
Tupi Antigo" (ed. Vozes).
A Bíblia Sagrada na Língua Guarani Mbyá
1.408 págs., R$ 27,80
Coordenador da tradução: Robert Dooley. Sociedade Bíblica do Brasil
(av. Ceci, 706, CEP 06460-120, Barueri, SP, tel. 0800-727-8888).
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