|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Ensaios de "Paulística Etc.", de Paulo Prado, e crônicas reunidas em "De São Paulo", de Mário de Andrade,
traçam "biografias" da cidade ao retratarem sua ascensão econômica, artística e intelectual
O tupi, o alaúde e o bandeirante
Folha Imagem
|
"Monumento às Bandeiras", obra de Victor Brecheret (1894-1955), em São Paulo |
João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha
As crônicas do jovem Mário de
Andrade ["De São Paulo"] e os
ensaios do já maduro Paulo Prado ["Paulística Etc."] guardam
uma surpreendente unidade de pensamento, reforçada na ação prática da Semana de Arte Moderna. Portanto, a leitura dos dois livros muito tem a ganhar
mediante um exercício de aproximação.
Exercício facilitado pelo notável trabalho
dos organizadores, respectivamente, Telê Ancona Lopez e Carlos Augusto Calil.
Nas crônicas, escritas para a revista carioca "Ilustração Brasileira", Mário de
Andrade confessou seu desejo: "Ao mesmo tempo que tenciono mostrar o movimento artístico e literário da gente paulista, é intuito meu explicar a enigmática
cidade que a todos os que não a observem amorosamente ou lhe queiram bem
guarda-se num mutismo de desdém ou
se enteabre num gesto de agressão" (pág.
81). Paulo Prado foi movido por um propósito similar, sintetizado no prefácio à
segunda edição de "Paulística": "Este é
um livro de estudos regionais. Nele aparecem as figuras típicas da história paulista: o português aventureiro, o mamaluco, o jesuíta, o piratiningano -conquistador e povoador- e o fazendeiro"
(pág. 45).
Os dois autores dedicaram-se à biografia de São Paulo. Há, porém, uma diferença significativa de enfoque. Mário de
Andrade ocupou-se da vida intelectual e
artística da paulicéia modernizada, revelando seu alvo sem disfarces: "Todo este
larguíssimo Brasil, que a revista sem dúvida abraçará" (pág. 81). Paulo Prado
voltou sua atenção ao passado, a fim de
descobrir como o espírito bandeirante
contribuiria no enfrentamento do "problema magno de nossa formação -a
questão da unidade nacional" (pág. 50).
Palavras escritas em 1934, dois anos após
a Revolução Constitucionalista. Sem dúvida, tratava-se de um problema atual,
demasiadamente atual.
Passado e presente reunidos no projeto
de promoção da arte moderna. Na primeira das cinco crônicas, como se tivesse
em mãos o programa da Semana de
1922, Mário anunciou o futuro próximo:
"São Paulo toda se agita com a
aproximação do Centenário. (...) São
Paulo quer tornar-se bela e apreciada. Finalmente a cidade espertou num desejo
de agradar" (pág. 71). Num artigo escrito
em Paris, em dezembro de 1923, "Victor
Brecheret e a Semana de Arte Moderna",
Paulo Prado recordou o passado imediato com olhos de lince: "Dentro de pouco
tempo -talvez bem pouco- o que se
chamou em fevereiro de 1922, em São
Paulo, a Semana de Arte Moderna, marcará uma data memorável no desenvolvimento literário e artístico do Brasil"
(pág. 301).
Na verdade, foram necessárias três décadas para o pleno reconhecimento da
importância decisiva da Semana, mas o
prognóstico, se foi um tanto apressado,
nem por isso deixou de ser acertado.
A obra de Brecheret aproxima ainda
mais os dois autores. Em suas crônicas,
Mário destacou sobretudo o "Monumento aos Bandeirantes, hino nacional
da raça" (pág. 84). No prefácio à primeira edição, Paulo Prado valorizou idêntico movimento, inclusive reproduzindo
parcialmente o vocabulário do poeta: "A
bandeira resumiu todas as qualidades e
defeitos da raça que se apurara na segregação da montanha" (pág. 60).
A equação é clara: as bandeiras remeteriam à origem idealizada do espírito paulista, enquanto a escultura de Brecheret
representaria a renovação do impulso
desbravador, agora no campo intelectual
e artístico. Nesse sentido, vale frisar que,
numa escala reduzida, Paulo Prado escreveu o avesso de "Os Sertões". Reencontramos nas páginas de "Paulística" a
cisão entre o Sul (litorâneo) e o Norte
(agreste). E, numa prosa que sabe a Euclides, redescobrimos o isolamento civilizacional, ocasionado por um meio potencialmente hostil: "O bandeirismo é
um resultado da localização do paulista
no seu altiplano; a sua expansão, como se
deu, era fatal e lógica" (pág. 60). Porém a
conseqüência não foi o atavismo e o atraso, mas o dinamismo e o progresso.
Por isso, na leitura de Mário de Andrade e de Paulo Prado, passado e presente
assegurariam a (legítima) postulação de
hegemonia paulista no domínio da cultura e talvez da política, pois o centro
econômico do país já se encontrava na
paulicéia industrializada. Fiel a seu estilo,
Mário foi direito ao ponto: "Já se sente
que de novo a cidade gera idéias e escolas, reatando uma tradição quase murcha, quase ofuscada totalmente pelo brilho do Rio" (pág. 86). Paulo Prado afirmou exatamente o mesmo, mas mineiramente fez seu mestre falar: "E o Sul
-dizia Capistrano-, o Sul, no fundo, é
São Paulo" (pág. 52). Discordar sem
mais de Capistrano de Abreu, em 1925,
ano da publicação de "Paulística"? Improvável...
Discussão tola
Evitemos uma discussão tola, mas que nos últimos anos recobrou força em alguns meios: a rivalidade entre cariocas e paulistas, relativa à
hegemonia cultural do país. Com exceção dos campos de futebol, terreno em
que toda rivalidade é sempre bem-vinda,
insistir nesse debate revela uma inquietante falta de criatividade.
De um lado, é previsível que, após décadas de supremacia econômica, grupos
intelectuais e artísticos paulistas tenham
tomado de assalto a cena cultural por
meio da operação de guerrilha denominada Semana de Arte Moderna. E, como
autênticos guerrilheiros, os bandeirantes
modernos viajaram ao Rio de Janeiro,
cooptando nomes de peso para sua causa. Com certeza, Paulo Prado brindou
com os amigos: "Chapeau!".
De outro lado, eventuais grupos cariocas que legitimamente decidam reverter
esse quadro não devem gastar seu precioso tempo na constatação ressentida
do óbvio: a perda da hegemonia. Na verdade, deveriam questionar a inépcia de
seus governadores, que têm demonstrado um descaso calculado com as universidades estaduais, confundindo apoio à
cultura com propaganda eleitoral. Deveriam ainda criticar suas elites econômicas, que nunca se distinguiram pelo
apoio a iniciativas culturais de longo prazo. Por fim, essa aborrecida polêmica talvez sobreviva para que não enfrentemos
o verdadeiro problema, isto é, a desigual
distribuição de recursos federais e a excessiva concentração de capital simbólico (visibilidade) no eixo São Paulo-Rio.
O que os intelectuais e artistas do Norte e
do Nordeste têm a dizer sobre o assunto?
Não desejo concluir sem destacar a organização dos dois livros.
Em sua introdução, "Mário de Andrade, Cronista do Modernismo", Telê Ancona Lopez realizou um impecável trabalho de contextualização, ampliado nas
inúmeras notas às cinco crônicas. Porém
o aspecto mais relevante se refere à hipótese que propõe no tocante à gênese de
determinados poemas de "Paulicéia
Desvairada". Num esforço de detetive,
buscou flagrar os "vestígios do processo
criativo" do poeta nas crônicas, rastreando suas sucessivas transformações até a
versão publicada em livro.
Ora, a crítica genética supõe tanto a
existência de manuscritos prévios à publicação "final" em livro quanto a evidência de correções da obra que, revista,
será reeditada. Assim, os momentos significativos da elaboração do texto e de
sua posterior reescrita são trazidos à superfície. Contudo "o arquivo de Mário
de Andrade não guarda notas prévias ou
rascunhos dos textos publicados (...) em
"Paulicéia Desvairada'" (pág. 52). Telê
precisou estudar a gênese de poemas de
Mário "sem o apoio de manuscritos"
(pág. 58). Trata-se de um desafio de
grande interesse teórico.
Por isso, é uma bela aventura intelectual acompanhar passo a passo a
demonstração de Telê. Limito-me a
dois exemplos assinalados pela autora. Na primeira crônica, em novembro de 1920, Mário caracterizou o clima paulista como "desvairado de
odores e colorações" (pág. 73). O título da "Paulicéia" começava a ser elaborado. Na segunda crônica, no mês
seguinte, o poeta descobriu o "alaúde
vertiginoso da mocidade alegre e
triunfal..." (pág. 87).
Em breve, o instrumento ocuparia o
centro da cena, nas mãos de "um tupi
tangendo um alaúde...", no célebre
verso de "O Trovador". Veja-se o detalhe: as reticências foram mantidas.
O cronista era o poeta em gestação;
assim como o poeta foi o cronista do
ritmo vertiginoso da cidade.
Em sua introdução, "Um Brasileiro
de São Paulo", Carlos Augusto Calil
reconstrói a história textual de "Paulística", nas duas edições publicadas
por Paulo Prado. Trata-se, assim, da
biografia do livro, completada com
uma sintética, mas esclarecedora,
"biografia do autor", no final do volume. As circunstâncias políticas e as relações com o ambiente intelectual da
época também são mencionadas.
Porém o aspecto mais relevante se
refere à ampliação do volume. Calil
reuniu textos inéditos em livro, agrupados sob as rubricas "Outros Retratos do Brasil"; "Tradição e Modernismo"; "Café & Borracha - Jogo de Tolos". Além disso, coligiu críticas contemporâneas à publicação de "Paulística" e publicou cartas até então inéditas de Mário e Oswald de Andrade,
nas quais discutem o livro. Daí o
"etc." acrescentado ao título original,
"Paulística, História de São Paulo".
O leitor, desse modo, é apresentado
a um Paulo Prado "rejuvenescido",
por assim dizer. Considerando-se a
reedição de "Retrato do Brasil", também organizada por Calil com critérios críticos semelhantes, devemos
aguardar estudos que renovem a
compreensão da obra dessa figura
múltipla: bem-sucedido homem de
negócios, visionário mecenas e, sobretudo, um sofisticado intelectual
brasileiro. De São Paulo.
João Cezar de Castro Rocha é professor de
literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e
Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As
Máscaras da Mímesis" (Record).
De São Paulo
120 págs., R$ 20,00
de Mário de Andrade. Telê Ancona Lopez (org.).
Ed. Senac São Paulo (r. Rui Barbosa, 377, 1º andar,
CEP 01326-010, SP, tel. 0/xx/11/3284-4322).
Paulística Etc.
360 págs., R$ 48,00
de Paulo Prado. Carlos Augusto Calil (org.). Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32,
CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).
Texto Anterior: + livros: Tupi or not tupi Próximo Texto: + cultura: O tempo preocupado Índice
|