São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Em "História e Teoria Social", Peter Burke analisa o diálogo, ao mesmo tempo tenso e frutífero, entre as ciências humanas desde o século 18 A terceira via do pensamento
Ronaldo Vainfas
Peter Burke é autor já bastante conhecido dos historiadores brasileiros, em especial os dedicados ao
Antigo Regime. Dele já foram traduzidos no Brasil, entre outros, "Cultura
Popular na Idade Moderna" (Cia. das Letras), "A Fabricação do Rei" (ed. Jorge
Zahar) e "A Escrita da História" (ed.
Unesp), compondo obra de excelente
contribuição historiográfica, seja teórica,
seja para o conhecimento das transformações operadas na Europa entre os séculos 16 e 18.
Com grande erudição e inteligência, Burke recupera esse percurso de encontro e desencontro, avançando na demonstração dos meios e modos por meio dos quais a história, como disciplina ou ciência, procurou incorporar, ao longo do século 20, perspectivas e métodos da "teoria social", a exemplo da comparação e dos métodos quantitativos, destacando, com razão, a forte aproximação com a antropologia, de que a micro-história desenvolvida na Itália, a partir dos anos 1970, seria o exemplo mais destacado. Por meio de uma exposição didática e sintética, coisa em que Burke é sempre genial, o livro vai desvendando esses diálogos interdisciplinares sem cair em esquematismos ou proselitismos doutrinários tão comuns nesse tipo de obras. Mas não evita enunciar os limites e as críticas que tal ou qual corrente a seu ver merece, como as várias vertentes ancoradas no quantitativismo -a chamada "cliometria"-, ingênuas a ponto de crer na objetividade de seus dados e ignorar o caráter indiciário e imperfeito dos registros coletados. Outro ponto alto do livro é a discussão sobre a pertinência e operosidade dos conceitos, isto é, se vale tentar explicar as sociedades passadas a partir de conceitos que lhes são extemporâneos ou se o melhor é deixar que a época estudada fale por si mesma -uma tentação dos historiadores mais ligados, por exemplo, à antropologia hermenêutica. Burke resolve bem a questão, ao sugerir que, embora os "saberes locais" tenham seu valor e devam ser decifrados, a interpretação teórica é essencial. Afinal os historiadores não contemporâneos da época estudada "têm ao menos as vantagens da compreensão a posteriori e de uma visão mais global". Isso posto, Burke expõe uma série de conceitos operativos ligados aos papéis sociais dos agentes históricos em função da família e parentesco; sexo e gênero; comunidade e identidade; classe e status; centro e periferia; mentalidade e ideologia etc. Sua excelente exposição abre o leque de possibilidades e deixa claro que a história não pode ser reconstruída a partir unicamente da problemática das classes sociais. O capítulo final põe em cena uma questão essencial para os historiadores, a saber, a discussão sobre como a teoria social pode ajudá-los a compreender e explicar as mudanças históricas. O ponto de partida reside na exposição e contraste entre o modelo spenceriano e o marxista, ambos de certa forma evolucionistas, embora o primeiro, sob diversas variantes, preconize transições suaves e quase naturais das sociedades tradicionais às modernas, enquanto o segundo enfatiza mudanças abruptas, revolucionárias. Haveria um terceiro caminho? Burke o localiza no que chama de "sociologia histórica", cética quanto ao peso da economia ou da tecnologia no processo de mudança e adepta da política e da guerra como campos essenciais de explicação. Mas vai além, permitindo-se trabalhar "de dentro para fora" no item "seis monografias à procura de uma teoria". Expõe, então, as contribuições de Norbert Elias, Michel Foucault, Fernand Braudel, Le Roy Ladurie, Nathan Wachtel e Marshal Sahlins, selecionando um livro de cada autor. Se todos eles são hoje muito conhecidos pelos historiadores, nos anos 1960 eram novidade, valendo dizer que os comentários de Peter Buke são ainda de atualidade indiscutível. Burke termina o livro assumindo, pessoalmente, a validez de certo ecletismo teórico, desde que se o entenda como abertura intelectual para idéias diferentes e consistentes, conforme o objeto de investigação. Mas o que fica claro, lembrando que o texto resulta de um curso universitário, é que Peter Burke, além de historiador, desde o início de sua carreira foi excelente professor. Um mestre capaz de ensinar teoria de forma inteligível em lugar de usá-la para esconder a falta de idéias ou propagar doutrinas. Ronaldo Vainfas é professor titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense, autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros. História e Teoria Social 280 págs., R$ 30,00 de Peter Burke. Ed. Unesp (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/3242-7171). Texto Anterior: Tiques e cacoetes da historiografia Próximo Texto: Lançamentos Índice |
|