São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002 |
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+ sociedade Possibilidade da clonagem humana lança o indivíduo numa oscilação inquietante entre júbilo e angústia que anuncia uma nova subjetividade Volúpia da imortalidade
Joel Birman
O comprimento de onda da
imortalidade se transformou nos últimos tempos, já que entramos agora na era do clone. Isso porque até bem recentemente aquele estava apenas presente como ficção. Essa presença já manifestava por si só o
desejo de que um dia poderia ser engendrado. Porém, nada disso tinha nenhuma materialidade, se reduzindo a uma
nebulosa tecida pelos nossos devaneios.
Bastava uma simples abertura dos olhos
para que esse sonho se desmanchasse.
Porém o desejo que animava tais ficções
insistia, restaurando sempre outras narrativas sobre a imortalidade.
Os laboratórios de pesquisa avançada
eram os cenários de tais fantasmagorias
científicas, ao passo que o grande público de incautos desfrutava disso pelo viés da mídia e da indústria do entretenimento, que semeavam o terreno fértil do
imaginário popular. Destacava-se aqui,
certamente, esta última.
Com efeito, quantos filmes e romances
já não foram feitos sobre isso? Milhares,
pode-se afirmar sem nenhum titubeio.
Dos melodramas baratos até produções
de grande densidade ética, a literatura e
a filmografia contemporâneas fizeram já
de quase tudo sobre isso. Portanto, entre
os imaginários científico e popular constituiu-se lentamente uma relação outra
com a imortalidade no Ocidente.
desejo de imortalidade que está sempre presente no Ocidente. Como se sabe, a finitude da existência é a fonte primordial de angústia para a subjetividade, porque a morte é a nossa única certeza. Todo o resto pode ser incerto, mas que a morte nos espera como o mestre absoluto não existe sombra de dúvida. A marca da finitude é o que torna, em contrapartida, todas as nossas incertezas insuportáveis, justamente porque atualizam a presença da morte nas suas entrelinhas. São os signos da morte que nos espreitam nos interstícios das incertezas sempre angustiantes, justamente porque aquela é a nossa única certeza. Com a morte temos um encontro marcado, não dispondo de todo o tempo para fazer o que quisermos. A anulação da dor Além disso, esses experimentos prometem algo a mais que está no direto desdobramento do fantasma da imortalidade, qual seja, de que a dor vai desaparecer de nossa existência. Isso porque a dor presentifica a morte, porque anuncia a nossa impossibilidade de dominar os acontecimentos. Esses nos ultrapassam sempre, apesar de nosso desejo de nos opormos a isso. A questão da dor nos remete para as perdas que perpassam a existência. Essa é atravessada por aquelas, de maneira que existir é poder suportar as perdas que acontecem o tempo todo. Das perdas reais às ideais, passando pelas decepções e a dor, a finitude nos assalta sempre nas nossas incertezas. É justamente isso que torna a existência sempre trágica, apesar de todos os artifícios que utilizamos para ludibriar o encontro marcado com a morte. As clonagens terapêutica e reprodutiva se delineiam como um bálsamo para a finitude. Se a primeira promete o alongamento da vida, a segunda nos anuncia a imortalidade. Em ambas, portanto, uma transformação antropológica radical se enuncia e toca frontalmente nossos limites. Isso porque nos permitiriam mais tempo para viver, transformando as marcas de nossa herança amaldiçoada. Com isso, poderíamos adiar o encontro marcado com o mestre absoluto e ter o júbilo de subjugá-lo. É do triunfo sobre a morte que se trata aqui. Além disso, teríamos mais tempo para cicatrizar as nossas feridas, possibilitando, assim, não o domínio da contingência, mas, certamente, que pudéssemos nos refazer das perdas e decepções. Tudo se passa, enfim, como se pudéssemos sempre recomeçar, dominando a finitude e ludibriando o destino tão funesto. É preciso considerar ainda, contudo, que a inscrição da clonagem no imaginário social não é nova. Vale dizer, aquela é mais um capítulo na já longa história da medicalização ocidental, iniciada na passagem do século 18 para o século 19, pela qual a normalização (Foucault) se produziu e se reproduziu de maneira sempre contínua, rompendo com todos os obstáculos que a isso se opusessem. As fronteiras foram permanentemente ultrapassadas, sejam essas de natureza ética, jurídica e religiosa, de forma que aquela se implantou como marca de civilidade. A construção da medicina científica foi o paradigma desse processo, sendo sempre em nome do saber que essa se autorizou na colonização do social, inicialmente pelas práticas da polícia médica e, posteriormente, da higiene social. Nos diferentes registros da clínica e da medicina social, a medicina realizou diversas cartografias do espaço social, configurando-se com os discursos da saúde pública e do preventivismo. Tudo isso constituiu uma viragem importante na nossa tradição, à medida que se constituiu aquilo que Foucault denominou de biopoder e bio-história, sobre os quais se fundaram o poder do Ocidente desde o século 19. Isso porque o que a sociedade disciplinar delineou, em oposição à anterior sociedade soberana, foi que a qualidade de vida seria a condição de possibilidade para a riqueza das nações. Ponto nevrálgico Com isso, a normalização dos corpos e dos espíritos se destacou como o ponto nevrálgico do processo disciplinar, no qual a medicina se transformou no paradigma de onde derivaram as diferentes ciências humanas, preocupadas com que essas sempre estivessem no traçado de fronteiras entre os territórios sempre fluidos do normal, do anormal e do patológico. Assim o Ocidente se deslocou do imperativo do fazer morrer e deixar viver, presente na ordem soberana, para a inovação que se enunciou então, qual seja, fazer viver e deixar morrer. Foi nessa viragem triunfante que o biopoder se constituiu, ao retirar as prerrogativas da soberania, prometendo sempre a imortalidade, a abolição da dor e das perdas. Vale dizer, o projeto de medicalização incide diretamente no imaginário da finitude, prometendo transformar os fundamentos dessa. É isso ainda que está em causa nos atuais desdobramentos do biopoder. O que se promete ainda, por meio das diferentes modalidades de clonagem, é a ultrapassagem da finitude humana, de maneira que a imortalidade seja, enfim, possível. Por isso mesmo, tudo isso ocupa tanto os nossos corações e mentes, nos inquietando sempre, em nossa oscilação entre angústia e júbilo. Joel Birman é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de, entre outros, "Gramáticas do Erotismo" (ed. Civilização Brasileira). Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: Lasar e Otto Índice |
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