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EM "POLITIZAR AS NOVAS TECNOLOGIAS", LAYMERT GARCIA DOS SANTOS ALERTA QUE A SOCIEDADE BRASILEIRA AINDA NÃO SE DEU CONTA DOS EFEITOS DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS
CIBORGUES DA RESISTÊNCIA
Peter Parks - 6.jan.2003/France Presse
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Visitantes observam fetos conservados em temperatura ambiente e sem nenhum odor, em Hong Kong |
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
Somos todos ciborgues. Com os avanços da tecnociência "pós-virada cibernética", o corpo, assim como a natureza, se tornou
passível de ser processado por meio das linguagens da informática e genética. Em livro que reúne ensaios escritos ao longo de
uma década, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos incita a um levante contra o determinismo tecnocientífico. Abordando ambiente, sociedade e arte, o autor de "Politizar as Novas Tecnologias - O Impacto Sócio-Técnico da Informação Digital e Genética" (ed. 34, 320 págs., R$
34,00) defende que a politização implica não aceitar ser definido nos
termos da "informática da dominação" [expressão da filósofa da ciência Donna Haraway, que o autor cita em seu livro].
"Foi através da questão do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento associado que fui me encaminhando cada vez mais para a
biotecnologia e me interessando em pensar mesmo o futuro do humano e as questões das transformações que estão em curso, como a passagem do humano para o ciborgue", diz em entrevista ao Mais!. Professor na Universidade Estadual de Campinas, ele oferece no livro subsídios para, uma vez ciborgues, sermos os "ciborgues da oposição".
O sr. nos mostra em seu livro que a tecnologia permeia hoje todas as dimensões da vida humana de forma quase invisível e envolve, portanto,
questões de interesse público. Qual a importância de politizar o debate
sobre as novas tecnologias?
Há uma necessidade em todos os tipos de sociedade de colocar em discussão não mais só os efeitos das inovações da tecnociência, mas também
as opções tecnológicas que são feitas,
e uma necessidade de subtrair esse
debate do terreno exclusivo dos especialistas e, principalmente, só dos
cientistas e dos tecnólogos. Isso já ficou claro em muitas sociedades, principalmente nos países mais avançados -já ficou clara a necessidade de a
sociedade se pronunciar a respeito
das opções que os cientistas e os tecnólogos tomam com relação às novas
tecnologias.
No nosso caso, essa é uma questão
muito importante também, ainda que
certas pessoas digam -e eu às vezes
fui criticado por isso- que não interessa falar de tecnologias de ponta em
um país que tem muitos problemas
que são pré-modernos. Eu acho que é
necessário, sim, fazer essas discussões
aqui para que as opções que são feitas
ou que por ventura venham a ser feitas não apareçam como fatos consumados, porque muitas vezes é assim
que acontece.
Ou seja, temos que trabalhar nas
duas pontas, a gente tem uma sociedade que é pré-moderna, moderna,
pós-moderna, tudo ao mesmo tempo, nós temos todas essas temporalidades convivendo ao mesmo tempo.
E justamente por isso nós temos que
colocar questões que são de ponta em
um país que não está todo em um patamar, digamos, pós-industrial. Porque elas nos chegam fatalmente.
No campo ambiental, o sr. nos apresenta
um quadro da biodiversidade brasileira
sendo colonizada e pirateada. Ou seja,
mesmo dentro de uma perspectiva de
possibilidade de preservação, continuamos prejudicados do ponto de vista da
propriedade intelectual?
Essa é uma questão que na verdade
decorre de uma espécie de paradoxo,
que é o seguinte: por um lado você
tem uma erosão de biodiversidade
crescente, isso não só no Brasil, mas
mundialmente, e você tem uma consciência de que essa perda progressiva
aumenta os riscos de esgotamento ou
leva a uma limitação séria de recursos. Desde o relatório do Clube de Roma [associação privada composta por
cientistas, políticos e civis de vários
continentes, com sede no Instituto
Tecnológico de Massachusetts, que,
em 1972, elaborou relatórios de grande repercussão sobre o limite dos recursos naturais no planeta], no começo dos anos 70, você já tem a idéia de
que os recursos do planeta são limitados. Inclusive toda a questão ambiental se articula em torno da escassez e
dos limites dos recursos.
Mas por outro lado, e por isso eu digo que é um paradoxo, à medida que
a tecnociência avançou e que a aliança
entre tecnociência e capital permitiu a
exploração não só tecnocientífica,
mas também comercial, da informação digital e genética, isso fez com que
os recursos digitais e genéticos abrissem para o capitalismo uma espécie
de jogo no qual se pode começar do
zero, porque as recombinações são
ilimitadas, possibilitando que o capitalismo seja explorado sob novas bases, que são inéditas.
No começo dos anos 90, no Brasil, a
questão da nossa megadiversidade
era só de especialistas, e para o resto
da população era uma não-questão. E
era uma contradição gigantesca para
nós, como país de maior megadiversidade do planeta, porque, em um
momento em que informação genética passava a ser um recurso valioso para o capitalismo de ponta, nós
tínhamos os recursos, mas não tínhamos tecnologia para explorá-los e
nem sequer a consciência de como fazer para negociar melhor os termos
da troca de recursos por tecnologia.
E uma outra dimensão ainda hoje
menos discutida, mas igualmente importante para nós, é a do conhecimento tradicional embutido nesses
recursos, ou seja, é o fato de a gente ter
mais de 300 povos indígenas diferentes, de a gente ter um conhecimento
tradicional com relação a essa biodiversidade que é riquíssimo, de a gente
não ter consciência da existência desse conhecimento nem do valor que
ele tem e de não ter dispositivos legais
de proteção para eles.
Que avanços têm ocorrido na normatização dos usos e intervenções na biodiversidade e no próprio ser humano? Porque no
campo da genética também se coloca a
questão da propriedade. Em um dos artigos de seu livro ("Limites e Rupturas na
Esfera da Informação"), o sr. conclui com
uma visão muito sombria, ao afirmar que
o poder de intervenção parece ilimitado.
O que tem acontecido a partir da década de 90 no campo jurídico é um
deslizamento progressivo para permitir e legitimar a apropriação da vida, e essa apropriação se dá por meio
da apropriação genética não-humana
e também humana, progressivamente. Essa é uma questão que continua e
muitas vezes ela se faz, eu diria, muito
mais por meio dos deslizes que são
produzidos por meio de jurisprudência do que propriamente por legislações que passam por parlamentos. E a
bioética, na maioria dos casos que conheço pelo menos, só faz sacramentar
aquilo que é decidido pela tecnociência; então a bioética é muito criticável,
porque muitas vezes ela dá uma legitimidade a esse processo de deslizamento progressivo, que na verdade
facilita tal apropriação da vida.
Eu tento problematizar o tempo inteiro o que significa essa apropriação,
porque eu acho que é, digamos, a última fronteira do capitalismo. Não sou
eu que digo isso, é o jornal "Financial
Times", por exemplo, quando diz que
a derradeira privatização é a discussão entre as farmacêuticas que querem patentear descobertas, e não inovações, e as que querem patentear
processos e produtos de inovação. E
estão discutindo isso para ver como é
que se dá esse apagamento de fronteira entre descoberta e inovação.
Seu prognóstico -feito em 2000- continua o mesmo, então?
Eu acho o seguinte: na verdade o
prognóstico é que essa apropriação é
progressiva, acho que ela vai continuar, mas de certa maneira há uma
movimentação no sentido de colocar
limites a essa apropriação, e é por isso
que eu acho importante que os não-especialistas, que não só os tecnólogos e os cientistas, entrem no debate e
possam se pronunciar não só sobre os
efeitos das tecnologias, mas sobre as
opções tecnológicas que são feitas e
sobre quais são as implicações dessas
apropriações da vida.
Isso tem implicações na concepção do que
seja a condição humana. O pós-humano já
virou um clichê, e o conceito vem sendo
usado nas mais diversas acepções, mas o
sr. poderia explicar como o define?
Eu acho que a gente pode usar o conceito em um sentido até heurístico,
para entender a passagem. Existem
muitas definições e muitas variações
sobre que sentido conferir a essa expressão. A que eu prefiro, na verdade,
é: primeiro, o pós-humano de certa
maneira marcaria o fim do humanismo e marcaria uma passagem para
uma situação na qual o homem não é
mais a medida de todas as coisas, o
que, no meu entender significa que
nós estamos passando para um outro
tipo de referencial.
Esse outro tipo de referencial é dado
por uma linguagem nova -que é a
linguagem da informação- , que trabalha em um plano que é pré-individual, ou seja, informação genética e
informação digital trabalham em um
plano que é inferior ao plano do organismo, do indivíduo, do inteiro.
Quando a gente passa para esse outro plano, que é o plano micro -e é a
virada cibernética que permite isso-
, o que acontece? Vou dar um exemplo: a medicina pós-humana não considera mais o corpo do ponto de vista
anatômico. Ela vai definir o corpo como uma série de agenciamentos de
informação que vai ser "rendido", ou
seja, que vai ser processado por meio
de uma linguagem informática e uma
genética.
Então o corpo não vai mais ser visto
da mesma maneira. Isso se pode perceber claramente, por exemplo, no
Projeto do Humano Visível, que é a
digitalização total do corpo para servir como uma referência à visualização absoluta do corpo. Esse projeto é
paralelo ao Projeto Genoma Humano, que pretende decifrar o plano micro, que pretende decifrar
justamente a informação genética de cada um. Então você tem uma digitalização total por um lado e, por outro lado, uma decifração do código genético. Esse corpo na verdade vai ser visto como maquinações,
num plano micro, e o resultado dele no plano orgânico é o resultado
dessas maquinações. Nós não estamos mais interessados na anatomia
desse corpo, nós mudamos de plano.
E a medicina pós-humana vai trabalhar com as possibilidades, que se
abrem pelas novas tecnologias, de fazer intervenções e modificações
nesse corpo, que na verdade não cabem dentro da concepção de medicina moderna. Já é outra medicina. Essa dissolução que ocorre na passagem para uma perspectiva micro, molecular, essa dissolução é que
está sendo chamada de o pós-humano. Esse "pós" designa uma passagem para alguma outra coisa.
E o que é essa outra coisa?
Aí começam as diferenciações dentro do pós-humano sobre o que seria, digamos assim, a "superação" desse corpo. De um lado existe uma
corrente que vai começar a trabalhar a "obsolescência" do corpo, e daí
Kurzweil, por exemplo, falar em um ser humano 2.0, pensando essa
superação como uma transcendência desse corpo sendo concebida da
seguinte maneira: "E se o corpo fosse apenas um suporte que pode ser,
digamos, abstraído, e a gente pudesse pensar a mente humana como
algo que pudesse ter uma continuidade, a gente poderia fazer o humano existir para além desse suporte?". Essa linhagem vai trabalhar isso
via inteligência artificial e robótica.
A outra linha é a da biogenética, que é a transformação do próprio
humano. A transformação do humano, de certo modo, abre perspectivas de uma segunda linha de evolução, que não é mais uma evolução
natural. E a grande discussão hoje em dia é qual é o sentido dessa
transformação que pode levar a uma outra natureza humana e quem
vai entrar nessa outra natureza humana. Aí você tem toda a questão,
por exemplo, das novas formulações da eugenia, todo o medo da volta
das doutrinas eugênicas dos anos 30, inclusive do nazismo etc., sobre
melhoramento não mais de raça, mas de patrimônio genético.
Passagens do seu livro sugerem que é na experiência estética que o homem
encontra algumas das respostas diante do assombro das transformações
que estão em curso. Qual o papel da arte nesse contexto?
A arte, seguindo um pouco as indicações principalmente de Deleuze,
interessa como criação de devir. Portanto, a arte trabalha fundamentalmente com a questão do virtual, porque o devir é aquilo que ainda
não foi atualizado, que existe como virtual e que encontra uma expressão em uma criação. A arte é um terreno extremamente sensível, e o
próprio capital e a tecnociência estão cada vez mais conscientes da importância da arte, exatamente porque ambos lidam com o virtual, claro que não da mesma maneira.
E não é por acaso que o interesse pela arte se deslocou para a arte
contemporânea, que hoje a alta finança está interessada por arte contemporânea, e não mais pela "obra", por aquilo que pode ser inscrito
ou que já foi inscrito na história da arte etc.
O que me interessa mais além da relação da arte com o virtual é o
modo como os artistas contemporâneos estão estabelecendo uma relação nova com as tecnologias, no sentido em que nem eles são senhores das tecnologias nem são escravos delas, mas estabelecem uma relação de diálogo intenso com elas.
Não havendo primazia nem do humano nem da máquina, essa relação possibilita a realização de potências das máquinas que ainda não
tinham sido atualizadas junto com potências criativas do humano que
também não tinham sido atualizadas, porque elas só podem se dar na
relação, que é o que ocorre por exemplo nos trabalhos do Bill Viola,
um artista capaz de captar essas potências por meio de um uso muito
particular e criativo das novas tecnologias.
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