São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003 |
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PARA O ENSAÍSTA, TIMOTHY LEARY ATUALIZOU A REVOLUÇÃO DIGITAL ANTEVISTA POR MARSHALL MCLUHAN E ABRIU NOVOS CAMINHOS PARA SUA COMPREENSÃO DO CAOS AO ESPAÇO CIBERAL
por Augusto de Campos
Somos criaturas engatinhando para o centro do mundo cibernético. Assim como o cérebro pisciforme tinha que se "terravestir" para habitar o Terrarium, assim os nossos cérebros primatas tiveram que adotar vestes canaveral-espaciais para migrar para o "siderespaço". E usar aparatos digitais para habitar o "ciberespaço". Aqueles de nós que escolheram a opção anfíbia passarão algumas de suas horas de vigília equipados e navegando na cibernético-psibernética Telalândia. O nascimento da era informacional ocorreu em 1976, não numa fumarenta cidade industrial como Bethlehem, PA, mas num humilde estábulo (garagem) no solarento vale do Silício pós-industrial. O Computador Pessoal foi inventado por dois garotos cabeludos e barbudos, santo Estefânio, o Grande, e santo Estêvão, o Menor [ele trocadilha com os nomes de Steve Jobs e Stephen Wozniak], e, para completar a metáfora bíblica, o mesmo prodígio foi batizado a partir do Fruto da Árvore do Conhecimento: a Maçã (Apple!) 0"Cibernética" vem do grego, "kubernetes", piloto. A origem helênica dessa palavra é importante enquanto reflete as tradições socrático-platônicas de independência e autoconfiança individual. Quando traduzida para o latim, porém, a palavra grega surge como "gubernaetes". O verbo básico "gubernare" significa controlar as ações ou condutas, dirigir, exercitar a autoridade, submeter, comandar. Esse conceito romano é obviamente muito diferente da noção helênica do "piloto". A palavra "cibernética" foi cunhada em 1948 por Norbert Wiener, que escreveu: "Decidimos chamar todo o campo da teoria do controle e da comunicação, quer se trate de máquina ou animal, pelo nome de cibernética, que formamos a partir da palavra grega para timoneiro". Wiener e os engenheiros romanos corromperam o significado da palavra "ciber". A palavra grega "piloto" transforma-se em "governador" ou "diretor", o termo "guiar" se torna "controlar". Cumpre libertar o termo, reetimologizá-lo, redirigi-lo a um conceito autopoético. A palavra "governértica" se refere a uma atitude de controle-obediência em relação a si próprio e aos outros. Os termos "pessoa cibernética" ou "cibernauta" nos fazem retornar ao significado original do "piloto". Essas palavras (e mais o termo pop "ciberpunk") se referem à personalização da tecnologia de informação-conhecimento, ao pensamento inovativo da parte do indivíduo. Tais expressões podem descrever um novo tipo de modelo de ser humano e uma nova ordem social. "Ciberpunk" é uma terminologia popular, que pode ser aceita num sentido tolerante de humor "high-tech", uma granada-significado atirada contra as barricadas conservadoras da linguagem. O cibernauta ou "ciberpunk" é o piloto que pensa clara e criativamente, usando aplicações quântico-eletrônicas e know-how cerebral, o novo, atualizado modelo de ponta do século 21. Homo sapiens sapiens ciberneticus. O modelo clássico do Velho Mundo ocidental para o "ciberpunk" é Prometeu, um gênio tecnológico que "roubou" o fogo dos deuses e deu-o à humanidade. Os "ciberpunks" são os inventores, escritores inovadores, artistas tecnofronteiriços, diretores de filmes de risco, compositores da mutação icônica, livre-cientistas tecnocriativos, visionários dos computadores, "hackers" elegantes, videomagos, todos aqueles que ousadamente armazenam e guiam idéias para lá onde os pensamentos nunca chegaram antes "through seas never sailed before". [traduzo: por mares nunca dantes navegados, como diria o pré-ciberpunk Camões]. Os primeiros 75 anos do século 20 foram devotados a preparar, treinar e iniciar os seres humanos a se comunicar em fala-quântica, isto é, a pensar e agir em um nível inteiramente diferente -em termos de "clusters" digitais. Dessa perspectiva histórica podemos ver que o século 20 (1900-1994) produziu uma avalanche de movimentos artísticos, literários, musicais e de entretenimento, todos eles compartilhando a mesma meta: desnudar as roupagens e os uniformes, dissolver nossa fé cega na estrutura estática; liberar-se da rigidez da cultura industrial; preparar-nos para conviver com o paradoxo, com estados alterados de percepção, com definições multidimensionais da natureza; tornar confortável, manejável, palatável, vivível a realidade quântica; fazer com que nos sintamos em casa ao movimentar eléctrons pelo monitor do nosso computador. ARTE DIGITAL! DIY (Do It Yourself)!. Uma nova forma de arte está emergindo -a produção de provocações de três minutos sobre atrações futuras. Haicais eletrônicos! Muitos filmes não sobrevivem aos trailers que os anunciaram. Os criadores de filmes estão aprendendo a lição da física quântica e da neurologia digital: muito mais informação em pacotes muito menores. Uma nova linguagem global de sinais virtuais, ícones, píxeis 3-D será a língua franca da nossa espécie. Em lugar de usar palavras, nós nos comunicaremos em auto-editados clipes selecionados das selvas caóticas de imagens armazenadas em nossas pulsações. Os dialetos vocais locais permanecerão, é claro, para a comunicação íntima. Por estendermos nossas mentes e darmos poder aos nossos cérebros, não temos que abandonar os nossos corpos nem as nossas máquinas nem os nossos suaves e secretos murmúrios amorosos. Guiaremos carros, como agora andamos a cavalo, por prazer. Desenvolveremos estranhas expressões corporais, não para trabalhar como robôs eficientes, mas para realizar atos livres. Em lugar de uma engenharia reprimida, a "imagenharia", a fabricação de realidade eletrônica: aprender como expressar, comunicar e compartilhar as maravilhas dos nossos cérebros com os outros. A boa notícia é que a mídia cibernética não pode ser controlada. Sinais eletrônicos espoucando pela atmosfera não podem ser paralisados por muros de pedra nem por cães da polícia de fronteiras. Essas e outras idéias fictocientíficas, lançadas por Timothy nos anos 90, vão-se tornando cada vez mais realidade. Os computadores pessoais têm pouco mais de 20 anos. A internet menos de dez! Meu primeiro computador pessoal -um Mac Classic preto-e-branco, tela de 9 polegadas, com 40 MB no disco rígido interno e apenas dois de memória Ram, que eu achava uma maravilha -é hoje pura relíquia gigaobsolescida. As potencialidades da linguagem digital cresceram extraordinariamente, em ritmo vertiginoso, com hardwares e softwares cada vez mais aperfeiçoados e disponibilizados, reavivando no mundo dos signos a pertinência antecipadora das propostas da vanguarda, fulcradas em conceitos como a materialidade do texto e a sua projeção pluridimensional, visual e sonora ("verbivocovisual"), a interpenetração do verbal e do não-verbal, a montagem, a colagem, a interdisciplinaridade, a simultaneidade e, por fim, a interatividade, em substituição aos modelos convencionais do discurso ortodoxo e fechado. Cabe aos artistas e poetas explorar o território novo que nos oferece a engenharia computacional, libertá-la prometeicamente, ainda que de forma simbólica, como parábola exemplar, das práticas meramente institucionais e comércio-comunicativas e humanizá-la com o sopro transfigurador de suas criações. Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros livros. Texto Anterior: Ciborgues da resistência Próximo Texto: + autores: Filosofias da história - por Peter Burke Índice |
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