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OS BOAS-VIDAS
Em livros pretensiosos, o americano Jonathan Franzen e o inglês John Berger fazem autobiografias desiguais
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em um poema memorável, Carlos Drummond de Andrade
narra o encontro entre um ser humano e
um marciano. O alienígena, assustado com a presença contraditória e confusa que avista
("como pode existir, pensou
consigo, um ser/ que no existir
põe tamanha anulação de existência"), foge.
Perseguido, uma vez que o
outro buscava compreensão
("precisava dele como de um
testemunho"), se desintegra.
Sozinho, melancólico, o homem conclui: "E fiquei só em
mim, de mim ausente".
A impressão de um livro como "A Zona do Desconforto
-Uma História Pessoal" (Companhia das Letras, trad. Sergio
Flaksman, 232 págs., R$ 45), de
Jonathan Franzen, autor que
ganhou fama com "As Correções", é que uma perplexidade
quase essencial como essa está
muito, muito longe de suas
preocupações.
É como se, parodiando o último verso do poema, ele dissesse: e fiquei só em mim, de mim
pleno, transbordante, excessivo (ou, como ele diz: "O que me
desgostava e irritava eram todos os outros seres humanos
do planeta").
A obra, uma reunião com
acréscimos de vários textos autobiográficos, é pontuada por
alguns assuntos que são discutidos mais longamente, como
os quadrinhos de Charles
Schulz (1922-2000; como ele
afirma, rememorando o tempo
de sua adolescência com a convicação típica de quem tem
muitas certezas no mínimo duvidosas, "o artista vivo mais famoso do planeta"), a literatura
alemã e sua formação como artista ou a observação de aves.
A zona de desconforto a que
o título se refere vem de uma
discussão habitual dos pais do
autor sobre em qual temperatura deixar o aquecimento da
casa.
Mas, em sua vida, os "desconfortos" parecem sempre
muito estrategicamente escolhidos para mostrar como, no
final das contas, ele é "diferente" e especial, seja afirmando
desconhecer a masturbação
aos 18 anos, seja ressaltando as
suas dificuldades sociais (para
ao mesmo tempo ressaltar a
sua genialidade...), como no seguinte trecho:
"Eu precisava fingir que era
um garoto para quem era natural dizer "merda" o tempo todo,
que nunca tinha escrito um
trabalho do tamanho de um livro sobre fisiologia vegetal, que
não gostava de calcular magnitudes estelares absolutas em
sua nova calculadora Texas
Instruments com seis funções."
Se escrever uma autobiografia pressupõe uma vida extraordinária a ser reavaliada,
Franzen poderia ter esperado
um pouquinho, afinal ele não
tem nem 50 anos e ainda haveria tempo para coisas interessantes acontecerem...
Fantasmas
É o caso de John Berger
(1926), romancista, ensaísta e
crítico de arte inglês que, em
"Aqui Nos Encontramos" (ed.
Rocco, tradução Ana Deiró, 208
págs., R$ 33,50), recria episódios de sua história como se encenasse uma peça com as pessoas com quem contracenou ao
longo de sua existência, dando
vida aos fantasmas (a mãe, o
mentor, amigos, outros escritores) que povoam sua imaginação em locais que considera importantes e que dão nome aos
capítulos do volume: Lisboa,
Genebra, Cracóvia, Madri.
Assim como no livro de Franzen, existe aqui também um romance de formação do artista
ou um capítulo forte dedicado à
mãe morta.
A diferença é que o texto de
Berger carrega um sentimento
de pertinência, de adequação;
provavelmente porque ele está
repleto dos questionamentos
de alguém que, no final da vida,
olha para trás.
Desse modo, a despeito de alguns momentos forçados e dos
problemas de ritmo na narrativa, ele se distancia do jogo narcisista de que não escapa "A Zona do Desconforto" e tantas das
autobiografias que circulam
por aí.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo.
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