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O EROS DO PROCESSO
AUTOR DA BIOGRAFIA "OS ANOS DO CONHECIMENTO", O ALEMÃO REINER STACH
FALA DA RELAÇÃO "PROBLEMÁTICA" DE KAFKA COM OS JUDEUS E DE SUA VISÃO DA MULHER COMO MEDIADORA DA JUSTIÇA
A fascinação por Kafka decorre
do fato de que ele formulou a experiência humana
em seu nível mais fundamental e instintivo
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Reprodução/"Excavating Kafka"
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Kafka (dir.) na praia, em julho de 1914
JOSÉ GALISI FILHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE HANNOVER (ALEMANHA)
Numa conferência
pronunciada no
Fórum Cultural
Austríaco em 28/
4/04, intitulada "O
Fim das Lendas", o biógrafo de
Franz Kafka (1883-1924) Reiner Stach dizia: "Não preciso
apontar o enorme abismo entre aquilo que o nome de Kafka
significava duas gerações atrás
e o que representa hoje. Kafka
era, nos anos 1960, uma supernova literária, seu trabalho era
discutido com paixão e até
mesmo se tornou uma fonte de
esperança política".
"Hoje, em contrapartida,
Kafka é uma estrela, uma espécie de figura pop. Os originais
escritos com sua caneta se tornaram objeto de culto, cuja
propriedade poucos podem se
permitir. Surgiu até mesmo
uma espécie de turismo literário em todos os lugares que freqüentou, cercados por uma aura que quase nada mais tem a
ver com o nome do indivíduo
histórico e representam muito
mais um conceito, uma marca
comparável às de Mozart, Einstein ou Marilyn Monroe."
Há mais de 13 anos, Stach se
ocupa pacientemente em desmontar as lendas do edifício literário desse clássico moderno.
E o segundo volume de sua
enorme biografia, "Die Jahre
der Erkenntnis" (Os Anos do
Conhecimento, ed. Fischer,
726 págs., 29,90, R$ 73), concentra-se na fase final da carreira do autor, entre 1915 e
1924, marcada pela doença, pela guerra e pelo desmoronamento de suas relações.
"A guerra arruinou sua vida",
reconhece. Mas, em contrapartida, a experiência profissional
direta de Kafka -ele trabalhou
com seguros à época- com a
nova dimensão tecnológica do
conflito, a guerra total com armas químicas e a legião de mutilados a ser administrada pelos Estados-maiores no front
doméstico se transfigurou, em
sua escrita, em uma opção pela
parábola e por um depuramento formal extremos.
Para Stach, Kafka foi, de fato,
o único escritor do idioma alemão à época a perceber a essência do mundo administrado
emergente.
Sua biografia pode ser lida
como um romance em aberto,
no qual nos confrontamos com
todas as virtualidades de decisão que não se tornaram realidade na vida de Kafka.
De Hamburgo, o autor concedeu uma entrevista à Folha,
de que seguem abaixo os melhores trechos.
FOLHA - Uma das principais lendas
desconstruídas em sua biografia é a
de que Kafka teria se recolhido a um
mundo de fantasias privadas, enquanto a velha Europa desmoronava sob a Primeira Guerra. De que
modo a experiência da guerra se espelha em sua obra?
REINER STACH - Kafka não escreveu nenhum texto tematizando
diretamente a guerra, nenhuma narração em que a guerra
seja pano de fundo. Proliferou,
depois da guerra, uma "literatura de trincheiras" dos retornados do front, mas ele não podia [escrever isso], pois não viveu a guerra como soldado.
Essa experiência se espelha
na forma, não no plano temático. Até 1916 seus textos apresentavam uma dimensão lúdica, um gozo na construção de
situações fantásticas, ele jogava
com a literatura, como em "A
Metamorfose", por exemplo.
Vemos aí um enorme prazer
na narrativa de uma situação
absurda, na exploração e na
construção diferenciada de
uma lógica fantasmagórica até
seus limites. Ele procurava, por
assim dizer, desdobrar essa
fantasia inicial em todas as suas
possibilidades.
A guerra lhe tirou esse prazer
lúdico da literatura. Até a escrita de "O Castelo", ainda irão
transcorrer oito anos de intervalo, mas não vemos mais nesse
período nenhuma cena construída, apenas parábolas curtas. Kafka deixa de ser um "narrador": torna-se escritor, mas
não mais um narrador.
FOLHA - Seria possível afirmar que
essa "nova aparição", esses homens
mutilados com membros protéticos,
já constitui, em si, a caricatura de
um ser humano e que a opção pela
parábola parte de uma imagem
real, que em si já é uma redução?
STACH - Sim, mas o que é mais
importante é que não se trata,
nesse contexto, do destino individual, mas sim coletivo, das
massas emergentes, derivado
da nova relação com a máquina.
A máquina torna-se mais importante que o indivíduo.
Essa relação se alterou para
sempre com o emprego de armas químicas, com as novas linhas de produção e com a simbiose entre o front doméstico e
o campo de batalha na "mobilização total" de recursos humanos e materiais.
Surge, na época, o novo conceito da "batalha de material".
A superioridade do material
decide a guerra -esse era o ditado. Havia até o conceito de
"homem-material". Os homens
se tornam apenas uma engrenagem, entre muitos outros recursos, numa luta industrial.
Kafka experimentou as conseqüências desse estranhamento completo em sua profissão, todos os dias. Ele foi o único escritor em língua alemã, à
época, que viu esse processo.
Em outras palavras, eles não
viram, como Kafka, a guerra na
sua dimensão "administrada".
Outros escritores, como
Egon Kirsch, viveram a experiência do front, mas enxergavam apenas uma parte desse
novo maquinário e não seu lado
decisivo: o front doméstico.
Kafka era amigo de Kirsch,
que vivenciou massacres terríveis no front, mas não dispunha
de um conceito de que a guerra
se transformara radicalmente
na administração das massas
civis, com a participação, na retaguarda, de mulheres e escritórios de administração de apólices de seguros.
Daí surgiu também o conceito de guerra total, depois operacionalizado pelos nazistas.
Nesse sentido, não se trata de
fantasias pessoais, embora a
lenda afirme que Kafka era um
neurótico que padecia de fantasias compulsivas e perdera o
contato com a realidade.
Trata-se de uma perversão
pública, e não privada. Ele compreendeu a guerra não como
flagelo, mas como perversão
coletiva, uma perversão real,
organizada e administrada.
FOLHA - A que conhecimento o sr.
se refere no título de seu novo livro?
STACH - Até a Primeira Guerra,
o conhecimento não era provavelmente o mais importante
para Kafka, mas sim a tomada
de decisões corretas: casar,
constituir família ou tornar-se
escritor e deixar o emprego.
E essas opções, que estavam
em aberto até 1914, foram se reduzindo, não apenas em razão
da eclosão da guerra, mas também da doença [Kafka morreu
de tuberculose].
Houve nesse entretempo
uma fase em que ele não escreveu muito, entre 1915 e 1916.
Então, a partir do final de
1917, delineia-se em seu percurso uma outra forma de literatura. Seus textos tornam-se
cada vez mais abstratos e parabólicos e visam, em sua concisão extrema, uma certa forma
de conhecimento, que ele atinge entre os anos de 1917 e 1919:
a constatação de que tem de viver com o que lhe sobrou.
Não há mais sentido em forjar novas opões, mas sim em fazer o balanço daquele saldo e
viver com uma certa dignidade.
Esse conhecimento significa
que, em outras palavras, ele
precisa de uma atitude estóica,
uma atitude transfigurada em
seus textos, como um ponto alto da forma que é o romance
inacabado "O Castelo".
Trata-se de um "estoicismo
da forma", uma clareza que decorre não da resignação ou do
desespero, mas do realismo sobre as opções ainda disponíveis. Pode-se falar das próprias
perdas sem desespero.
FOLHA - O sr. cita no início do livro o
ensaio de Cynthia Ozick "The Impossibility of Being Kafka" (A Impossibilidade de Ser Kafka). Não haveria
uma contradição entre sua pretensão literária de escrever uma biografia romanceada, que presentifica e
mergulha em cada cena dessa vida?
STACH - Toda biografia que
pretenda abranger substancialmente seu objeto não pode deixar de ter uma pretensão literária. Nenhuma biografia cronológica pode ser bem-sucedida.
Não se pode, como biógrafo,
descrever a vida de alguém como se fosse um encadeamento
causal.
Quando retrato Kafka numa
determinada passagem de sua
vida, tenho de incluir todas as
possibilidades sobre como ele
poderia ter tomado determinada decisão. Caso contrário, não
se entende a decisão.
Faço uma analogia: se você
tiver de descrever como jornalista uma audiência e descrever
apenas o que foi dito pelo acusado ou pelo juiz, os leitores
não entenderão o que se passou, pois não conhecem as regras processuais.
Quando o acusado afirma algo, é preciso levar em conta
quais outras opções ele dispunha naquela dada situação processual. Sem essas opções, não
há como avaliar o procedimento da defesa.
FOLHA - A relação de medo e prazer com a herança judaica em Kafka
é extremamente complexa.
STACH - O problema é que Kafka se sentia extremamente
atraído pela cultura e pela identidade judaicas, mas a relação
com os judeus reais que conhecia, a maioria em Praga, é problemática -até os desprezava.
Numa carta, afirma: "É tenebroso sempre precisar da polícia para fazer valer seus interesses". Ele sempre se expressou de maneira agressiva contra os judeus que não sabiam o
que queriam e sempre chamavam a polícia quando se sentiam ameaçados, definindo-se
como vítimas.
Quando falo em vítima, falo
no sentido negativo da vítima.
Ele imaginava, com o sionismo,
uma definição positiva da identidade judaica.
Mas não existe nenhuma
passagem em que se queixe do
anti-semitismo -algo como
"nós, os judeus, somos sempre
perseguidos"-, mas há muitas
passagens em que se refere de
maneira extremamente desabonadora aos próprios judeus
que se definem como vítimas e
que procuram tirar partido disso. Ele tinha nojo dessa atitude.
É muito difícil, depois do Holocausto, contextualizar essa
posição, mas Kafka não podia
imaginar a dimensão que o anti-semitismo organizado atingiria na década seguinte.
Que o anti-semitismo existisse, isso lhe parecia evidente,
mas, para ele, se tratava de restabelecer a dignidade.
Kafka gostaria que os judeus
reconquistassem a própria iniciativa, e isso lhe parecia o ponto central do movimento sionista. Mas também ironizava
sua ideologização e, sobretudo,
as disputas internas.
FOLHA - A guerra cortou o contato
de Kafka com sua noiva, Felice
Bauer, mas o sr. lança um novo olhar
sobre esse relacionamento...
STACH - O que pude conseguir a
partir do contato com a família
é que Felice Bauer, na verdade,
omitiu e silenciou para Kafka
muitas informações decisivas
sobre sua família, para protegê-la dele.
Certamente, ela não tinha
nenhuma confiança em Kafka.
A história da família dela era
um catálogo de catástrofes.
Havia na família uma irmã
com um filho ilegítimo que teve
de ser escondido da avó.
Felice tinha um irmão que
roubara a firma em que trabalhara e, para não terminar na
cadeia, teve de fugir para os Estados Unidos.
Ela pagou a fuga com o dinheiro aparentemente destinado ao casamento com Kafka.
Pagou a passagem e ainda enviou dinheiro -na verdade,
quase todas as suas economias.
Ele percebeu, é claro, que ela
lhe escondia muitos detalhes,
mas, cada vez que ele perguntava sobre isso, ela silenciava ou
lançava mão de subterfúgios.
Ela simplesmente mentia, e
Kafka não conseguia compreender. Ele lhe dizia: "Você
pode enganar seus pais, mas
não a mim".
É interessante em sua obra o
papel das mulheres como instâncias mediadoras da Justiça,
como em "O Processo", em que
são passagens ou portas entre
as várias instâncias, dizem
meias-verdades.
Nesse romance, Kafka erotizou o próprio processo.
FOLHA - O sr. compara a imaginação de Kafka a um "cinema permanente". O que significa isso?
STACH - Essa imaginação cinematográfica você encontrará
em muitas passagens como, por
exemplo, na "Carta ao Pai":
"Seria como se você ocupasse
todo o mundo com seu corpo e
sobrassem para mim apenas os
espaços que ele não sombreia".
Há aqui uma típica fantasmagoria, não do menino, mas
do adulto Kafka. Ele quer dizer
algo de importante, mas encontra apenas uma imagem -uma
imagem muito boa, por sinal.
Esse é um exemplo da maneira como ele pensa com imagens. Vemos também nos "Diários" como pensava intensivamente com imagens elegantes.
São metáforas que reaparecem
nos romances e parábolas.
Kafka tinha que lutar constantemente com esse fluxo de
imagens -o que também era
um fardo.
Ele mesmo escreveu nos
"Diários": "Tudo me faz pensar
imediatamente". Se observa alguém na rua, esse instantâneo
se desdobra numa reflexão de
meia hora: como é sua família,
como a pessoa se comportaria
ao retornar para casa etc.
FOLHA - Para dizer com Adorno, ele
fixa aquele momento mimético pré-discursivo da linguagem -o gesto?
STACH - Sim, o gesto é decisivo
na linguagem. Ele descreveu o
encontro com várias pessoas
antes da guerra em seus "Diários", em um contexto em que
não usa palavras, mas apenas a
pantomima.
Ele descreve um encontro
com Max Brod, em que este
abotoa e desabotoa o paletó de
tão nervoso, e como os judeus
orientais encantavam as mulheres, mas não há nenhum
conteúdo discursivo.
FOLHA - O conjunto do legado privado de Max Brod ainda não é totalmente acessível. Quais foram suas
dificuldades com esse material?
STACH - É uma história complicada. Ele é muito vasto, entre 15
mil e 20 mil cartas, não apenas
endereçadas a Kafka, mas a interlocutores famosos, como escritores, jornalistas etc.
Existem também diários não
publicados e alguns cadernos
de notas que datam de 1901, antes que ele conhecesse Kafka, e
um outro caderno já a partir do
início da relação, no qual provavelmente se encontrem muitas
informações inéditas da fase
juvenil de Kafka.
Na verdade, seu legado está
dividido entre Zurique [na Suíça] e Tel Aviv [em Israel].
O problema é que todos os
documentos em Tel Aviv se encontram numa residência particular há décadas, e os herdeiros desejam vendê-lo, mas o
Arquivo Nacional de Jerusalém
se pronunciou para que não
deixem Israel.
O Arquivo Nacional de Marbach [Alemanha] mostrou também interesse em adquirir parte do arquivo. Isso poderá se
transformar numa disputa judicial, mas até agora esse legado de propriedade particular,
depositado num quarto repleto
de papéis em Tel Aviv, está indisponível.
FOLHA - O que é verdadeiro na lenda de que Kafka pretendia destinar
todos seus escritos ao fogo?
STACH - É uma meia verdade.
Há duas folhas nas quais Kafka solicita que os textos inacabados em suas gavetas fossem
incinerados.
E, na medida do possível,
Brod deveria recuperar as cartas que estavam com Felice e
outras pessoas. Mas trata-se
apenas dos documentos privados e dos fragmentos.
Kafka não levantava nenhuma objeção aos textos já publicados, como, por exemplo, o último volume de "O Artista da
Fome" -ele desejava que fosse
publicado de qualquer maneira. O testamento refere-se apenas aos textos inacabados. E
Brod retrucou, dizendo que
não poderia fazer isso.
FOLHA - O que permaneceria, além
das lendas, como o traço mais moderno e realista de sua obra?
STACH - A administração das
massas. Com a web, os governos passam a acumular cada
vez mais dados privados em
tempo real. É uma forma de
controle jamais imaginada antes. A fascinação por Kafka decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em
seu nível mais fundamental e
instintivo.
Foi uma experiência que superou desde o início os limites
da língua alemã até se tornar
um lugar-comum da condição
absurda moderna, do estar entregue a mecanismos de controle invisíveis.
Os movimentos especulativos da Bolsas nos mostram todos os dias, com uma clareza
assombrosa, como decisões baseadas em detalhes aparentemente racionais potencializam
uma reação irracional.
O acesso e o acúmulo de dados privados dos cidadãos podem ser justificados pelos governos como decisões racionais, mas a soma dessas decisões leva a uma rede fora de
controle até dos próprios governos e que se volta contra seu
controle.
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