|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Livros
O pseudolibertador
Em biografia encomendada e marcada por preconceitos, Karl Marx qualifica Simón Bolívar de covarde e antidemocrático
FRANCISCO DORATIOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Karl Marx estava praticamente na miséria em meados da
década de 1850, a
ponto de, no duro
inverno londrino de 1855, pedir
ajuda financeira a Engels para
comprar carvão e manter a casa aquecida.
Três anos antes, emprestara
dinheiro de um vizinho para
pagar o caixão da filha que
morrera com um ano de idade.
Essa situação explica ter o filósofo alemão aceito, em 1857,
convite de Charles Dana, editor
do "New York Daily Tribune",
extensivo a Engels, para escreverem verbetes de história militar e biografias para a "New
American Cyclopaedia".
A Marx coube escrever a biografia de Simón Bolívar (na
realidade, Simón José Antonio
de la Santísima Trinidad Bolívar y Ponte Palacios y Blanco),
embora não tivesse maior interesse ou conhecimento sobre o
personagem.
"Canalha"
Bolívar morrera em 1830, e
sua imagem póstuma era de
competente estrategista militar e talentoso diplomata na luta pela independência de parte
da América do Sul da Espanha,
atuação que lhe valeu o título
de "Libertador".
O pensamento marxista inspirou, no século 20, movimentos anticolonialistas, de libertação nacional, e o surgimento de
interpretações teóricas críticas
à expansão do capitalismo, como a do imperialismo.
Atualmente, o presidente venezuelano Hugo Chávez, com
base em idéias que imagina terem sido de Bolívar, defende
projeto político "bolivariano" e
"socialista" e faz referências ao
marxismo.
Nessas circunstâncias, há
uma certa expectativa de que
este ensaio de 24 páginas de
Marx seja simpático a Bolívar.
Não é, porém, o que ocorre.
Marx detestava visceralmente Bolívar. Em carta a Engels,
classificou o "Libertador" como "o mais covarde, brutal e
miserável dos canalhas", enquanto no ensaio, mais comedido, apresenta-o como aristocrata, antidemocrático, covarde em campo de batalha, ambicioso em tornar-se ditador dos
territórios que libertara.
De fato, Bolívar foi um riquíssimo latifundiário e não via nas
massas populares consciência
política suficiente para poder
governar seu destino.
Queda no subjetivismo
Marx, embora elaborador do
"materialismo histórico", que
se propõe a explicar a história
por suas condições objetivas,
cai, contudo, no subjetivismo
quanto a seu biografado.
Responsabiliza-o por dificuldades militares que, na realidade, são compreensíveis no contexto em que se deu a luta pela
independência e adota postura
simplificadora dos fatos ao
apresentá-lo como sedento de
poder -quando o mais justo seria vê-lo simultaneamente como líder e instrumento no processo, nem sempre linear e harmonioso, da construção de uma
nova ordem política.
O livro também traz dois ensaios sobre o texto de Marx, um
antes e outro depois do fim da
União Soviética.
Eurocentrismo
No primeiro, de 1980, intitulado "O Bolívar de Marx", o
marxista argentino José Aricó
reconhece como errada a análise sobre "O Libertador", procura justificá-lo e conclui pela necessidade de o marxismo proceder a uma auto-avaliação.
Já no epílogo, escrito em
2001, os espanhóis Marcos
Roitman Rosenmann e Sara
Martinez Cuadrado interpretam positivamente o texto de
Marx, vendo-o como esforço
para destruir a visão idealizada
de Bolívar: "Situa o personagem e não desconhece o valor
de uma luta social pela independência".
Há, sem dúvida, esse esforço,
ainda que misturado com um
certo eurocentrismo (negado
por Aricó) e preconceito por
parte de Marx, a ponto de este
escrever que, "como a maioria
de seus compatriotas, ele [Bolívar] era avesso a qualquer esforço prolongado".
FRANCISCO DORATIOTO é professor no departamento de história da Universidade de Brasília.
SIMÓN BOLÍVAR
POR KARL MARX
Autor: Karl Marx
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Martins
(tel. 0/ xx/11/ 3116-0000)
Quanto: R$ 19 (80 págs.)
Texto Anterior: Leia trecho de "As Estrelas Descem à Terra", ataque de Theodor Adorno às colunas astrológicas Próximo Texto: No maior barato Índice
|