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Memória
A fé e o gulag
Em uma de suas últimas entrevistas, Alexander Soljenitsin, o mais famoso dissidente soviético, fala da situação da Rússia
e da relação com a morte
CHRISTIAN NEEF
MATTIAS SCHEPP
Rebelde, prisioneiro,
poeta e herói: meio
século depois de publicados, os arrasadores relatos de Alexander Soljenitsin sobre os
campos de trabalho forçado de
Stálin permanecem entre as
obras mais profundas da literatura moderna.
No verão europeu do ano
passado, quando sua saúde começava a falhar, o escritor relembrou sua vida extraordinária na entrevista abaixo. Leia os
principais trechos.
PERGUNTA - Alexander Issaievitch,
quando chegamos, nós o encontramos trabalhando. Parece que, aos
88 anos, o sr. ainda sente essa necessidade de trabalhar, embora sua
saúde já não lhe permita andar pela
casa. De onde o sr. tira sua força?
ALEXANDER SOLJENITSIN - Sempre
tive essa motivação interior para o trabalho, desde que nasci.
E sempre me dediquei com alegria ao trabalho e à luta.
PERGUNTA - Em seu livro "Meus
Anos Americanos", o sr. recorda que
costumava escrever até mesmo
quando caminhava pela floresta.
SOLJENITSIN - Quando eu estava
no gulag, às vezes escrevia até
sobre muros de pedra. Eu escrevia sobre pedacinhos de papel, memorizava o que tinha escrito e então destruía os papéis.
PERGUNTA - E sua força não o abandonou, mesmo em momentos de
desespero?
SOLJENITSIN - Sim. Eu pensava
freqüentemente: "Seja o que
for que aconteça, que assim seja". E então as coisas davam
certo. Parece que algo de bom
resultou de tudo isso.
PERGUNTA - Não sei se o sr. teve essa opinião quando, em 1945, foi preso pelo serviço secreto militar na Prússia. Em suas cartas escritas do
front, o sr. fez menções pouco elogiosas a Stálin, e o castigo foi uma
sentença de oito anos nos campos
de prisioneiros.
SOLJENITSIN - Tínhamos acabado de escapar de um cerco alemão e marchávamos para Königsberg [atual Kaliningrado,
Rússia], onde fui preso. Sempre
fui otimista.
PERGUNTA - Em toda a sua vida o sr.
pediu às autoridades que expressassem arrependimento pelos milhões
de vítimas do gulag e do terror comunista. Esse apelo foi ouvido?
SOLJENITSIN - Já me acostumei
ao fato de que o arrependimento público é inaceitável para o
político moderno.
PERGUNTA - O premiê Vladimir Putin diz que a queda da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século 20 e que é mais que chegada a hora de parar com essa reflexão
sombria e masoquista sobre o passado, especialmente porque há tentativas "de fora", como ele diz, de
provocar remorso não justificado
entre os russos. Isso não ajuda aqueles que querem que as pessoas esqueçam tudo o que aconteceu no
passado soviético do país?
SOLJENITSIN - Bem, há uma
preocupação crescente em saber como os EUA vão lidar com
seu novo papel de única superpotência, adquirido graças a
mudanças geopolíticas.
Quanto à "reflexão sombria
sobre o passado", infelizmente
aquela confusão entre "soviético" e "russo", contra a qual me
manifestei tantas vezes nos
anos 1970, ainda não desapareceu no Ocidente.
Não devemos atribuir os
malfeitos de líderes ou regimes
políticos individuais a um defeito inato do povo russo ou de
seu país. Não devemos atribuir
isso à "psicologia doentia" dos
russos, como freqüentemente é
feito no Ocidente.
Todos esses regimes na Rússia só puderam sobreviver graças à imposição de um terror
sangrento. Precisamos entender claramente que uma nação
só pode se curar quando seu povo reconhece sua culpa de maneira voluntária e consciente.
Críticas implacáveis feitas de
fora são contraproducentes.
PERGUNTA - Após sete anos de governo de Putin, o poder está concentrado nas mãos do presidente, tudo é orientado em direção a ele.
SOLJENITSIN - Sim, sempre insisti na necessidade de autogoverno local para a Rússia, mas
nunca opus esse modelo à democracia ocidental.
Pelo contrário, venho procurando convencer meus concidadãos, citando os exemplos de
sistemas altamente eficazes de
autogoverno local na Suíça e
Nova Inglaterra.
Ainda vejo com extrema
preocupação a lentidão do desenvolvimento do autogoverno
local. Mas esse processo já começou. Na época de Ieltsin, o
autogoverno local era proibido,
enquanto a "linha vertical do
poder" do Estado (ou seja, a administração de cima para baixo
de Putin) vem delegando cada
vez mais decisões às populações locais. Infelizmente, esse
processo ainda não ganhou caráter sistemático.
PERGUNTA - Qual é a situação da literatura russa hoje?
SOLJENITSIN - Períodos de transformações aceleradas e fundamentais nunca foram favoráveis à literatura. As obras significativas quase sempre, e em todo lugar, foram criadas em períodos de estabilidade, seja ela
boa ou ruim. A literatura russa
moderna não é exceção.
O leitor educado se interessa
muito mais pela não-ficção.
Acredito, porém, que a justiça e a consciência não serão atiradas aos quatro ventos, mas
continuarão presentes nos fundamentos da literatura russa,
de modo que ela possa servir
para iluminar nosso espírito e
aumentar nossa compreensão.
PERGUNTA - O sr. já disse que lhe é
difícil falar sobre religião em público. O que a fé significa para o sr.?
SOLJENITSIN - Para mim, é o alicerce e o apoio de nossas vidas.
PERGUNTA - O sr. teme a morte?
SOLJENITSIN - Não. Quando eu
era jovem, a morte precoce de
meu pai lançou uma sombra
sobre mim, e eu tinha medo de
morrer antes de meus planos literários se concretizarem.
Mas, entre os 30 e 40 anos de
idade, minha atitude em relação à morte ficou calma e equilibrada. Sinto que ela é um marco natural de nossa existência,
mas de modo nenhum o último.
PERGUNTA - Ainda assim, lhe desejamos muitos anos de vida criativa.
SOLJENITSIN - Não, não. Não façam isso. Já vivi o bastante.
A íntegra desta entrevista foi publicada no jornal "The Independent".
Tradução de Clara Allain.
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