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Memória
Um dia na morte de Soljenitsin
Opositor tanto do comunismo quanto do liberalismo, escritor russo manteve suas posições até o final
da vida
ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Escrevo este texto no
dia seguinte à morte
de Alexander Soljenitsin. De ontem para
hoje fiquei impressionado com a pouca reverberação do fato.
Logo após a notícia da morte,
liguei a TV na CNN esperando
ver algum daqueles quadros de
"breaking news", mas o noticiário esportivo da Olimpíada
prosseguiu sem cortes, com
apenas uma menção, relativamente breve, bem depois. Alguns jornais no dia seguinte
noticiaram o fato sem destaque. Soljenitsin merecia mais.
Sua morte já havia começado
antes. Sua influência declinara
com o fim da União Soviética
(URSS). O Ocidente parecia
não necessitar dele como a
"consciência da Rússia", e, sim,
apenas como a "consciência da
União Soviética". Isso proveio
de suas posições políticas e
ideológicas.
Soljenitsin era anticomunista, mas não liberal. Criticava
tanto o comunismo ateu como
o liberalismo ocidental, permissivo e moralmente corrupto, segundo ele. Pregava uma
volta da Rússia às suas raízes
tradicionais e ortodoxas.
Essa não é a receita para
manter a popularidade no Ocidente atualmente.
E nem necessariamente na
Rússia. A identidade desse país
(que é o maior do mundo e
também, ao mesmo tempo, o
maior da Ásia e o maior da Europa) é um assunto que divide a
elite intelectual russa em várias correntes.
Os ocidentalistas consideram o país europeu e que, portanto, deve seguir o caminho
ocidental. Os eslavófilos dizem
que não é nem europeu nem
asiático, e sim uma civilização
única e que, portanto, deve seguir uma trilha própria. Os eurasianistas enfatizam o caráter
eurasiano do país.
Putin segue um caminho que
tem agradado a muitos eslavófilos e eurasianistas depois da
época do ocidentalista Ieltsin.
Soljenitsin deveria, assim, se
inserir bem nesse novo contexto. Mas Putin é um ex-agente
do KGB: não quer renegar o período da URSS, e sim incorporá-lo numa visão russa global
de séculos. E, com a URSS, Soljenitsin nada queria.
Mas a política nos faz esquecer o lado principal de sua atividade e pelo qual merecia
maior atenção: ele era um excelente escritor.
Desde o estilo direto ("hemingwayiano") de "Um Dia na
Vida de Ivan Deníssovitch" [ed.
Siciliano] até o denso e elaborado ("dostoievskiano") de
obras como "O Primeiro Círculo" e "O Pavilhão dos Cancerosos", Soljenitsin se mostrou à
altura da tradição russa dos
grandes escritores.
Aliás, é interessante notar a
analogia com Dostoiévski no
seu despertar como autor.
Os dois passaram por profundas transformações espirituais e ideológicas em seus períodos de exílio interno no país,
do qual emergiram como escritores com a missão auto-atribuída de resgatar a Rússia.
Lendo-se páginas de certas
obras dos dois, não se pode deixar de notar traços comuns no
pátos de suas narrativas.
Alguns dizem que Soljenitsin
era a "consciência da Rússia".
Isso é algo controverso, pois
nem todos no país concordavam com suas idéias. Basta ver
a relativa obscuridade em que
se encontrava após sua volta à
Rússia, nos anos 90, ou o caráter polêmico de suas fórmulas
para a reconstrução da nação.
Retidão moral
Entretanto, mais do que a
consciência na Rússia, Soljenitsin foi um homem que manteve
a coragem de suas convicções
no mundo.
Não temendo remar contra a
maré, enfrentou o sistema soviético, que considerava repressivo. Em seu exílio nos
EUA, quando se esperava que
se tornasse o "darling" da propaganda pró-Ocidente, atacou
o que via como complacência
do liberalismo ocidental.
De volta à Rússia, criticou a
decadência dos valores russos
sob o novo regime de Ieltsin.
Longe de ser uma metamorfose ambulante, manteve-se
firme na oposição aos regimes
pelos quais passou.
Intelectualmente pode-se
criticar o seu conservadorismo,
mas moralmente há que reconhecer que se manteve firme e
não se curvou a nenhum poder.
O maior reconhecimento
mútuo que teve com Putin nos
últimos tempos se deveu a uma
certa afinidade em suas concepções comuns do lugar da
Rússia no mundo, e não a uma
aproximação com o poder.
Simbolicamente foi uma justa tranqüilidade final para que
o lutador repousasse em seu
leito de morte.
ANGELO SEGRILLO é historiador da USP, da
Universidade Federal Fluminense e do Instituto
Púchkin de Moscou. Escreveu "O Fim da URSS e
a Nova Rússia" (Vozes).
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