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O GRANADEIRO BITTENCOURT
LEIA UMA CRÔNICA
DE OSWALD DE ANDRADE
PUBLICADA NO "CORREIO DA
MANHÃ", EM 1943,
E SÓ AGORA
RECOLHIDA EM LIVRO
por Oswad de Andrade
D. Amália estacou diante de mim no corredor.
Tinha os olhos tristes e baixos. Mas brilhava
neles a certeza de que aquele homem, que lá
dentro agonizava no quarto da Casa de Saúde, tinha uma imortalidade a protegê-lo contra o destino
inevitável. Era a imortalidade mais simples desta terra -a
do dever cumprido.
Minhas recordações passaram rapidamente ao Edmundo Bittencourt que eu visitara no acidente que o prendia à
cama, anos atrás, estiolando-lhe as energias. Mesmo a tortura sedentária não lhe quebrantara o ânimo. O simples
nome enunciado, do interventor do momento em meu
Estado, fizera voar tudo pela janela, a cama, o aparelho de
gesso que retinha a perna, a Casa de Saúde, o mundo
-São Paulo só pode ser governado por imbecis. A fórmula não é mais civil e paulista...
E minhas recordações atingiram aquela trégua de Paris
onde conheci a família Edmundo Bittencourt justamente
num momento de desolação, quando morria Aloísio, irmão de Paulo.
Edmundo Bittencourt era o debate em pessoa. Na ocasião, quando a trégua entre duas guerras decisivas para a
humanidade parecia transformar o mundo numa escola
de dancing ao jazz do cubismo, o debate se cerrava cândido nas questões de arte e de literatura. E vejo ainda Edmundo Bittencourt, no verdor dos seus 60 anos, galgar as
escadas de cinco andares de uma casa da velha Montmartre para opinar e discutir.
E minhas recordações me levam mais longe, bem mais
longe ainda, quando a minha mocidade de estudante mais
de uma vez estremeceu ante a atuação desassombrada e ferina desse vulto que encimava de dignidade profissional o
jornalismo brasileiro. Grande época aquela em que o poder descia para enfrentar, no campo de honra dos duelos,
o acusador indomável que o atingia.
Nunca mais da memória de alguém que tivesse vivido esses traumas do civismo republicano poderá sair essa atitude do jornalista Edmundo Bittencourt, aceitando numa
evidente inferioridade o repto com que pretendia intimidá-lo o ditador Pinheiro Machado. A voz da acusação que
não media sacrifícios de vida tornou-se então a esperança
dos desiludidos, o estímulo dos hesitantes, a coragem dos
fracos.
O heroísmo ditado pela dignidade profissional de Edmundo Bittencourt abria uma estrela na noite que descera
sobre a consciência nacional. E daí por diante sua vida foi
estimular e defender a oposição contra todas as arbitrariedades emanadas do gosto do mando e da inconsciência
dos mandantes.
Ordem e progresso em Gilberto Freyre
Gilberto
Freyre, que sofre como tantas consciências retas, as conseqüências metastáticas do câncer fascista, perguntava-me
um dia sobre essa época da Primeira República que ele
pretendia estudar sob a epígrafe amável de "Ordem e Progresso". Se alguma coisa pode mandar-lhe o meu depoimento, é a saudade dessa caminhada da liberdade que
produziu os grandes homens da Primeira República. Sem
dúvida não serei eu quem vá esquecer que, sob o lençol
constitucional dos direitos cívicos, uma sombria feudalidade dominou o primeiro quarto do século esgotando as
massas laboriosas nacionais e emigradas na primeira
construção econômica do país. Mas quem negará a vitalidade idealista que norteou as grandes campanhas eleitorais republicanas? Ligado ao jornalista, Edmundo Bittencourt, avulta o do apóstolo do direito que foi Rui Barbosa.
Se alguma memória se deve cultuar no momento em que
foi historicamente posta à prova a incapacidade monstruosa do fascismo, é essa do homem que galvanizou o
Brasil em nome das garantias públicas de viver que todos
pretendem. O livro que Gilberto Freyre anuncia com esse
doce nome "Ordem e Progresso" deve constituir mais do
que uma coroa piedosa depositada no túmulo de um pacífico programa ideológico. Onde há Ordem não há Progresso, dizia-me um amigo paradoxal e inteligente. Conforme a Ordem e conforme o Progresso.
Que esse álbum de um passado recente, onde vão guardar-se as memórias da gente livre e digna, que lutou pelo
desenvolvimento superior do Brasil, constitua uma fonte
de reservas na luta que mantemos contra as felonias e os
desacertos do fascismo. Que lhe seja um breviário para as
horas amargas da nacionalidade em guerra contra os que
querem fazer do apodrecimento uma ética e da cumplicidade com o mal um roteiro. E que nele figure entre os
maiores defensores do Brasil, do grande Brasil que se
anuncia nas esparsas dignidades do presente o nome honrado de Edmundo Bittencourt.
A crônica acima foi publicada no "Correio da Manhã" em 28 de novembro
de 1943 e incluída no livro "Feira das Sextas" (ed. Globo).
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