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TONS DE AMEAÇA
APROPRIAÇÃO DOS POEMAS DE CUMMINGS PELO
COMPOSITOR AMERICANO MORTON FELDMAN,
DISCÍPULO DE JOHN CAGE, ESTABELECE
UM CONFRONTO COM OS "EUROPEUS" PIERRE
BOULEZ E STOCKHAUSEN QUE SINTETIZA PARTE
DA HISTÓRIA DA MÚSICA DO SÉCULO 20
por Augusto de Campos
Para que uma obra tenha sucesso, o
seu criador deve fracassar", afirmou
Morton Feldman, um dos mais originais compositores do círculo de
Cage. "Quantas vezes tive vontade de chegar ao John, depois da audição de um concerto como o de "Atlas Eclipticalis" e dizer:
"meus pêsames, John, você compôs uma
das coisas mais maravilhosas que eu já ouvi"." De uns anos para cá, Feldman (1926-1987) vem sendo ouvido com crescente interesse. Além do significativo aumento de
gravações de suas músicas, várias delas
ainda inéditas em disco, foi publicado em
2001 um volume, organizado por B.H.
Friedman, "Give My Regards to Eighth
Street" (Recomendações à Rua Oito), que
reúne um bom número de seus artigos e
entrevistas e de onde extraí a citação do
início deste artigo.
Feldman é uma figura carismática, estranha, polêmica, contraditória, difícil de caracterizar e de avaliar no quadro da música
contemporânea, embora sem dúvida provocadora e fascinante. Numa época em
que o ruído e a "loudness", a estridência e a
explosividade sonora parecem constituir
componentes inevitáveis da composição,
ele optou por uma música pianíssima,
quase indiferenciada, anti-ruído.
Sua imagem preferida nos últimos tempos era a da tapeçaria oriental. "Coptic
Light" (Luz Cóptica), denominou a uma
de suas últimas obras, aludindo aos antigos tapetes dos coptas, egípcios cristãos
dos séculos 4º a 7º, que admirara no Louvre. Entre parênteses: a imagem da tapeçaria oriental fora também invocada por
Stockhausen a propósito de certas texturas
sonoras repetitivas de Ligeti, numa das entrevistas que deu a Jonathan Cott (1974). E,
antes de ambos, no começo dos anos 1930,
a compositora Ruth Crawford usara a imagem dos desenhos complexos dos tapetes
persas para justificar as assimetrias e irregularidades de suas composições, conforme se lê na biografia que sobre ela escreveu
Judith Tick (1997).
De todo modo, nas derradeiras obras de
Feldman o símile é levado às conseqüências as mais radicais. E, se Cage, seu reconhecido mestre, parecia optar antes pela
precipitação de eventos sonoros do que
pela composição no sentido de uma obra
definidamente elaborada como tal, Feldman, distanciando-se também da idéia de
composição, mas afastando-se dos "happenings" de Cage, dirigiu-se para a elaboração de intrincadas texturas ou, quem sabe, contexturas sonoras, que se afiguram
sem começo e sem fim.. Há aí algo de um
pré-minimalismo, mas onde o minimalismo é também fugidio e extratonal.
Embora considerado por todos um compositor "do círculo de Cage", como mencionado de início, e assim o fosse realmente, tendo ambos adotado métodos de indeterminação musical, Feldman afirmava
não aceitar o lema cagiano de que "todos
podem compor" e pretendia, paradoxalmente, uma personalíssima intervenção
nos modos de compor, o que Cage não deixava de reconhecer ao afirmar que a música das composições predeterminadas da
primeira fase de Feldman é Feldman executando a sua música indeterminada.
Divergências
Uma das marcas de sua
personalidade é o enfrentamento com os
europeus, especialmente Boulez e Stockhausen, que constituem a sua "bête noire". Insurge-se contra a perfectibilidade do
primeiro, seu profissionalismo e sua ortodoxia, e contra o brilho e a onívora criatividade do segundo, chegando a considerá-los, numa evidente provocação, "popularizadores" da música contemporânea. Tal
como Gertrude Stein afirmava de Joyce
que ele era o incompreendido que todos
compreendiam, embora ao mesmo tempo
sugerisse que os três maiores prosadores
modernos eram Proust, Joyce e ela.
Por trás dessa postura, evidentemente,
está a divergência com a idéia de obra estruturada, que, bem ou mal, Boulez e Stockhausen não abandonam, mesmo nas
composições mais livres. Única exceção,
no caso deste último, a experiência de "Aus
den Sieben Tagen" (Dos Sete Dias), em que
o músico alemão não oferece partitura,
mas apenas alguns lemas, aos executantes.
Mas há também um laivo de ressentimento pela rápida notoriedade dos dois compositores europeus no cenário dos anos 50
e nas décadas seguintes, quando Feldman
era ainda pouco reconhecido.
E, certamente, terá pesado em seu comportamento o desdém -manifesto na
correspondência Boulez/ Cage- com que
sua música foi acolhida pelo compositor
francês. Mas o fato é que os europeus, especialmente Boulez, mesmo nas obras
programaticamente "abertas", se orientam por conceitos de "composição" e de
"estrutura" que não parecem caber nos
projetos feldmanianos, propensos a desencadear antes manchas sonoras do que nítidas configurações.
É curioso que Feldman e Boulez, personalidades tão antagônicas, tenham, em diferentes fases, musicado textos do mesmo
poeta -Cummings-, elegendo, dentre
os seus poemas, alguns dos mais espaciais
e "tortográficos" e aparentemente mais refratários à musicalização: Feldman, para
"Four Songs to E.E. Cummings (1951)"
[Quatro Canções para E.E. Cummings],
escolheu os poemas "!Blac", "Air", "(sitting in a tree-)" e "moan", do livro "50
Poems" [50 Poemas] (1940); Boulez, para
"Cummings Is der Dichter" (1970), o poema "Birds", de "No Thanks" [Não, Obrigado] (1935). Num artigo intitulado "Poems
of Cummings set to Music" [Poemas de
Cummings Musicados], publicado no nº 4
(outubro de 1995) da revista "Spring", dedicada aos estudos cummingsianos, Norma Pollack, que afirma ter levantado até
então cerca de 370 obras musicais de aproximadamente 143 compositores sobre
poemas de Cummings, menciona a ambos
na área dos vanguardistas, ao lado de Cage
e Berio.
Feldman conheceu Cage em 1949 num
concerto em que se apresentava a "Sinfonia op. 21", de Webern. "Nenhuma obra
que ouvi antes ou depois me causou tão
grande impressão", comentaria anos mais
tarde. Foi certamente Cage que lhe chamou a atenção para os poemas de Cummings, como o faria também, mais adiante, com Boulez. Os textos não-convencionais do poeta já tinham sido musicados
por Cage: o ciclo das "Chansons Innocentes", ao qual pertencem "In Just-" , "Hist
Whist", "Little Tree", "Why Did You Go" e
"Tumbling-Hair", do livro "Tulips and
Chimneys" [Tulipas e Chaminés] (1923),
em "Five Songs for Contralto" [Cinco Canções para Contralto] (1938); o poema
"Wherelings Whenlings", também de "50
Poems" (1940) -o mesmo livro de que
Feldman extrairia os textos para as suas
canções-, em "Forever and Sunsmell"
(1942); e "X It Is at Moments After I Have
Dreamed", do conjunto "Sonnets Unrealities", outra vez de "Tulipas e Chaminés",
em "Experiments nº 2", para voz solista
(1945-48). Mas os poemas escolhidos por
Feldman e Boulez são ainda mais desafiadores, por sua fragmentação tipográfica.
Nas "Cinco Canções para Contralto",
que o próprio Cage descreve como "canções cromáticas em que emprega processos não-ortodoxos de composição dodecafônica", já se antevê, pela parcimônia da
tessitura melódica e da harmonia, o ascetismo melódico que caracterizaria as suas
posteriores musicalizações de textos cummingsianos. É como um melodista à
Schoenberg/Webern simplificado por Satie. Nas demais obras, já despidas de preocupações dodecafônicas, esse processo se
acentua. Assim como fez com outras composições, como "A Viúva das 18 Primaveras", com texto extraído do "Finnegans
Wake" [de Joyce], Cage adota para a musicalização dos textos cummingsianos uma
tessitura ainda mais curta, algumas vezes
de apenas duas ou três notas, que aproxima o canto da linguagem natural da fala,
numa linha melódica modal, dir-se-ia
quase trovadoresca. Em "Forever and
Sunsmell", talvez a mais notável dessas
composições, ele mantém basicamente esse procedimento. Dividida em duas partes
e em cinco seções, com um interlúdio de
boca fechada, a melodia se desenvolve nas
duas primeiras seções com apenas duas
notas, seguidas no interlúdio por uma escala pentatônica, em que se integram as
mesmas notas, e que serve de base às seções finais, diminuídas de uma. A tessitura
intervalar da melodia, ainda que alçada a
uma oitava, é mantida em limites estritos e
estreitos: ré-mi-sol-lá-si. "Experiences nº
2", a última composição de Cage sobre texto de Cummings, mantém essa linha de sobriedade, reprisando o uso da "bocca
chiusa", que se entremescla às linhas do
poema, cantadas numa singela melodia
tonal, entre longas pausas. Diametralmente diversa é a abordagem de Feldman.
É sabido que a obra de Morton Feldman
se divide em duas fases -a da obra escrita,
totalmente predeterminada, e a da não-escrita em partitura, reduzida a diagramas,
em larga medida indeterminada. A musicalização dos poemas de Cummings é da
primeira fase de Feldman e traz ainda a
marca dos seus estudos com Stephan Wolpe (discípulo de Schoenberg radicado nos
EUA). Embora Feldman goste de relativizar o influxo desses estudos, dizendo que
passava o tempo todo brigando com Wolpe, este, sem dúvida, terá sido a matriz do
Webern que evocam as suas musicalizações assim como outras peças instrumentais suas do mesmo período. De fato, é a
depuração extrema, a par dos saltos intervalares da linha melódica, de molde serial,
em registros agudos, traços característicos
do compositor vienense, o que mais ressalta nas transposições de Feldman dos textos cummingsianos.
A sua adoção, com tais formas e inflexões, acaba adquirindo um caráter pioneiro, se se considerar a data em que foram
criadas essas peças musicais -1951, época
que Boulez buscava em René Char a matriz textual das suas composições, sem se
convencer da pertinência de sua escolha,
apesar dos extraordinários méritos musicais de obras como "Le Visage Nupcial" [O
Rosto Nupcial] (1946-47), "Le Soleil des
Eaux" [O Sol das Águas] (1948) e, pouco
adiante, do magistral "Le Marteau Sans
Maître" [O Martelo sem Mestre].
Com notável intuição, como que corrigindo a defasagem que sempre se verificara entre os textos e a música dos protagonistas da Segunda Escola de Viena e seus
novos seguidores europeus, parece que
Feldman, já àquela altura, encontrara o
poeta certo para a música certa. Pois aqui,
com naturalidade, ele faz coincidir os característicos saltos intervalares webernianos com as desconstruções tipográficas da
poesia de Cummings, recortando a linha
melódica em sílabas e mesmo em fonemas, em evidente isomorfia com o texto.
Entre as composições de Feldman e Boulez emerge, com particular brilhantismo, a
de Luciano Berio, "Circles" [Círculos]
(1960), para voz, harpa e dois percussionistas, que utiliza os poemas "Singing" (de
"Tulipas e Chaminés", 1923) "Riverly" (de
"&", 1925) e "N(o)w" (de "W", 1931). Diferentemente de todos os outros, Berio dá
aos poemas de Cummings a dimensão de
uma cantata, explorando ao máximo, em
particular no caso do poema "N(o)w", de
complexa fatura tipográfica, as virtualidades fonêmicas sugeridas pela fragmentação vocabular, a ponto de incluir as pontuações não-ortodoxas e até mesmo os parênteses na transposição sonora. Para isso,
além de contar com uma intérprete excepcional, a cantora Cathy Berberian, cercou a
sua voz de um numeroso conjunto de instrumentos de percussão que respondem
gestual, minuciosa e precisamente às provocações e sugestões do texto, articulando
e desarticulando o discurso musical em fase com o discurso verbal. Sendo a mais
longa de todas as composições aqui consideradas, chegando a quase 20 minutos, a
composição de Berio contrasta, sob esse
aspecto, sobretudo com a de Feldman, a
mais econômica, cujas transposições musicais, à maneira weberniana, duram em
média menos de um minuto.
Foi Cage também quem levou Boulez a
conhecer a poesia de Cummings, em 1952.
Em contrapartida, foi Boulez quem o fez
conhecer o "Lance de Dados", de Mallarmé, que o músico americano chegou a
pensar em musicar. "Cummings Is der
Dichter" para coro misto e pequena orquestra, escrita tantos anos depois, é peça
extremamente complexa, com duração de
cerca de 14 minutos. ("Cummings É o Poeta" -o título surgiu por equívoco a partir
de uma conversa telefônica de Boulez com
uma secretária, que indagara o título da
obra para o catálogo da sua estréia em
Ulm, pela Schola Cantorum de Stuttgart,
em 1970). De todas as transposições aqui
consideradas é, por certo, a menos "inteligível". É pouco provável que o ouvinte, a
menos que disponha da partitura, consiga
captar mais do que uma ou outra palavra
do texto. Contraria, à evidência, a pecha de
"popularizador" que Feldman pretendeu
impor ao músico francês, mas não as teses
de Boulez sobre musicalização de poemas.
Em seu ensaio, "Som e Verbo" afirma ele
não querer competir com a musicalidade
intrínseca do texto poético, pretendendo
utilizá-lo antes como pretexto para a pura
especulação musical. Assim, é um vôo livre
coral-orquestral o que exsurge da transposição bouleziana do poema "Birds", se é
que se pode falar aqui de transposição. O
texto é tratado em complicadas polifonias
vocais atravessadas de acordes em trilo ou
em bloco, em que as vozes femininas e
masculinas se interceptam ou se fundem,
prolongando-se nos próprios sons instrumentais e confundindo-se com estes.
Um vôo conflitual, que flui musicalmente
para além do texto, em sombras evasivas
de vozes, interrompidas por explosões sonoras -uma obra de grande beleza, por
certo, mas aparentemente estranha à fenomenologia visual do poema, onde a aparição e desaparição das palavras-pássaros,
isomorfizadas com a rarefação tipográfica
no branco da página, a desarticulação microestrutural dos vocábulos, tudo, enfim,
pareceria sugerir uma tradução musical de
maior transparência e claridade e de menor densidade musical.
É onde o webernianismo explícito das
peças, musicalmente muito mais modestas, de Feldman, se mostra mais consentâneo com os textos de Cummings. De todo
modo, há uma convergência na escolha do
poeta americano, a demonstrar que as contradições artísticas nem sempre são tão antagônicas quanto parecem. Como no caso
Schoenberg x Stravinski, o mediador é Webern, já que nas suas transposições Feldman parece -via Webern- mais bouleziano que Boulez.
Vistos à distância e no caso, ainda mais,
considerado o pequeno número de receptores da música contemporânea, certos
conflitos estéticos nos fazem lembrar o
conto "Os Teólogos", de Borges. Em resumo, dois religiosos se confrontam. Um deles, invejoso do brilho do antagonista, consegue ardilosamente inculpá-lo perante a
Inquisição e fazer com que seja queimado
por supostas heresias. Liquidado o rival, o
remorso o tortura. Anos depois, morre ele
próprio, queimado acidentalmente numa
choupana monástica atingida por um raio.
Entra no reino dos céus. Ao dirigir-se a
Deus, verifica que este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o toma
pelo seu oponente. Melhor dizendo, para
Deus o acusador e a vítima formavam uma
só pessoa.
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta,
autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed.
Perspectiva), entre outros livros.
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