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A EVANGELIZAÇÃO, OS EVANGÉLICOS
E A APROPRIAÇÃO DO DISCURSO CIENTÍFICO
Mesmo entre seminaristas que não se identificam expressamente como carismáticos, é freqüente a referência a um tipo de "experiência de Deus" que já não passa
tanto pelo engajamento político-social. Ao contrário, a
relação com o divino tende, para os carismáticos, mas
não só para eles, a ser mais verticalizada -o indivíduo e
"seu" Deus-, mais subjetiva e transcendente aos problemas sociais. "Não precisaria me ordenar para atuar
nisso, qualquer um pode fazer isso": é a alegação freqüente dos seminaristas cada vez mais "desengajados"
de hoje em dia, segundo constata Silvia Fernandes em
sua pesquisa no Rio. O padre Manzatto mostra que, curiosamente, o seminário é muitas vezes uma chance para o ingressante se inteirar do que acontece no mundo
extra-igreja: "Aqueles que entram para o seminário têm
uma militância social praticamente nula, é o seminário
que vai abrir para ele as cortinas do mundo". O professor Renold Blank, da Faculdade de Assunção, na mesma direção, diz: "O seminarista de hoje se interessa
mais pela vida espiritual, religiosa. A partir desta ele
pensa como deve ser a vida social. Talvez no passado, 20
anos atrás, acontecesse o inverso".
Seminarista do primeiro ano de teologia, Emerson
Ferreira da Rocha, 22, que reside na casa de formação
Bom Pastor, é paradigmático nesse sentido quando diz:
"Eu acredito que o padre tem que levar as pessoas a um
encontro pessoal com Jesus Cristo". Emerson, como é
regra entre seus colegas, mostra muito maior ênfase
quando a discussão se desloca para o plano moral: ele
lamenta a condição "de minoria" a que o católico vai se
confinando, numa cultura que ele qualifica de hedonista e consumista. Questionado se a linha ortodoxa do papa, em temas como camisinha e aborto, não tem alguma culpa por esse isolamento, ele diz: "Se a Igreja andar
como um barco à deriva, para onde o vento sopra ela
vai... quer dizer, hoje o pessoal está apoiando a camisinha, o aborto, uma série de coisas, amanhã eles vão
apoiar o quê? Daqui a cem anos vão apoiar o quê? A
igreja precisa ter posições perenes". Perenidade é uma
virtude que ele vê também no teor dos discursos do papa ao longo dessas mais de duas décadas de pontificado:
"Sua coerência é de impressionar", diz Emerson, ao justificar sua resposta, que aliás a reportagem ouviu de vários seminaristas do Bom Pastor, sobre quem seria,
dentro da história da igreja, seu principal modelo inspirador.
Gestos e fisionomia serena, tom de voz grave, circunspecção, Emerson preenche vários dos requisitos que o
"physique de rôle" do sacerdote parece exigir. Mas ele
diz que amigos seus ficaram espantados quando revelou a vontade de assumir a batina. "Falavam que eu não
tinha jeito. O pessoal tem uma imagem errada do padre.
Acham que ter jeito de padre é ser um cara fechado, reservado. Gosto de jogar futebol, gostava de sair com
meus amigos". O esporte é ainda um hábito. Joga bola,
com seus colegas, pelo menos uma vez por semana, na
quadra da faculdade, e diz que as proverbiais "caneladas", típicas de uma partida entre padres, não são mera
lenda, inclusive entre os "juvenis" do sacerdócio.
Ele chegou a ser coroinha da paróquia Nossa Senhora
da Paz, no Jaraguá, voltando para a igreja após um afastamento entre os 12 e os 14 anos, período em que começou a trabalhar. Conciliava o ofício de balconista numa
farmácia com os finais de semana dedicados ao grupo
de jovens da paróquia. Começando a sentir em si o que
a igreja chama de "sinais de vocação", comentou com a
namorada Vanessa: "Estou pensando em ser padre,
mas não tenho certeza". Seguiu-se um ano de "acompanhamento" por uma equipe da Pastoral Vocacional: ele
participava de encontros, reuniões, sua família foi visitada por padres. Confirmada a decisão, um dos momentos mais difíceis foi terminar com a namorada, que
hoje ele considera uma amiga.
Para Emerson, a "primeira missão da igreja" é a evangelização. Segundo ele, "os católicos que estão indo embora da igreja têm o direito, como diz o nosso cardeal
[d. Cláudio Hummes], de serem evangelizados por
nós". "Por quê? Porque nós os batizamos. O padre tem
que ir atrás deles. Se eu encontro alguém que está indo
para uma igreja evangélica, faço de tudo para que não
vá. Converso, vou atrás, procuro, sempre respeitando
sua liberdade."
A preocupação com a concorrência neopentecostal é
minimizada pelo padre Manzatto, que declara: "Não se
trata de uma guerra de religiões como se fosse uma
guerra de propagandas de cerveja. Não estamos disputando nada". Ao expor as tendências do curso ministrado na faculdade que ele dirige, ele recorre porém a um
tipo de valorização das ciências humanas que tenta distinguir a igreja: 1) desse cenário de "privatização da fé";
2) de um "conglomerado de religiões colocadas um
pouco ao gosto do consumidor"; e 3) de discursos religiosos voltados à "pessoa isolada das relações sociais".
Esses três elementos, não por acaso, são muito recorrentes nas análises atuais da sociologia e da antropologia acerca da vida religiosa no Brasil após o boom das
igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembléia de Deus.
A apropriação seletiva do discurso científico remete a
um problema dos mais sensíveis para o projeto pedagógico dos seminários: passada a euforia do namoro de
vertentes da teologia com o ideal socialista, como se
(re)colocam as relações entre fé e razão? O saber científico, tão ressaltado pelo Concílio Vaticano 2º, continua
sendo importante, nas palavras do professor e padre
Márcio Fabri dos Anjos, para que "não se ofereça picolé
a quem está gripado". Isso tanto no varejo da atuação
numa paróquia quanto no nível das grandes questões.
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