|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
AS "BOAS NOVAS", UM DEUS
PARA AMAR E UMA CARTA DO PAPA
Na aula do professor Fabri a que o Mais! teve acesso,
os instrumentos da ciência apareceram logo no início,
com a divulgação de uma pesquisa realizada por ele e
que diria aos alunos quem eles mesmos "são", em termos de perfil socioeconômico. É como se, numa igreja
cada vez mais "intra-eclesial", quer dizer, voltada para
as questões referentes a sua própria sobrevivência num
mercado competitivo e numa cultura aparentemente
hostil, o uso da ciência acompanhasse esse movimento
de introversão: ela é "útil", de um lado, em discursos de
crítica ao privatismo e à "teologia da prosperidade" dos
neopentecostais e, de outro, serve como forma de descrição do que o próprio ator eclesial, nas paróquias ou
nos seminários, é, de onde vem e para onde parece ir.
O saber leigo pode ajudar, diz Fabri, a "potencializar
as pessoas a serem cristãs na pós-modernidade", já que,
como afirmou, gerando risos gerais na sala: "E a igreja,
ih, meu... não somos mais aqueles que conduzimos".
Outra aula acompanhada pelo Mais! foi a do teólogo
Renold Blank, 63. Ele é um dos poucos professores leigos de Assunção (há só outros dois colegas dele nessa
mesma condição). Suíço, casado, doutor em filosofia
pela Universidade de Friburgo, ele abraçou a teologia,
doutorando-se também nisso na própria Assunção,
ao se encantar, como sua mulher, com a política pastoral da igreja de São Paulo em meados dos anos 70.
Blank é professor de escatologia [assuntos ligados ao
"fim do mundo" e ao destino do homem após a morte]. O tema é sabidamente propício a vôos não só da
imaginação, como também à expansão do pânico. Já
foi terreno estratégico no que ele chama de a "pastoral
da ameaça" da igreja de outros tempos. E é justamente
essa pastoral o que o professor tenta "exorcizar" da cabeça de seus seminaristas, lendo, por exemplo, um
texto catequético de 1724, de Caspar Erhard, que trazia
sete páginas e meia de descrições horripilantes das almas castigadas eternamente no inferno.
"Desculpem", diz Blank ao encerrar a citação, "mas
esse Deus é um doente mental, um sádico, um monstro, não um Deus que eu possa amar". Blank é autor
de livros como "Esperança Que Vence o Temor - O
Medo Religioso dos Cristãos e Sua Superação" (1995),
em que apresenta pesquisa que revela alto nível de incidência, entre os mais de 800 leigos católicos por ele
escutados, do que seria uma variante religiosa do fenômeno psicopatológico da "síndrome de Estocolmo", a identificação da vítima com seu torturador,
nesse caso, dos fiéis com seu "carrasco" divino.
Na segunda parte da aula, Blank se dedica a "falar
daquilo que lhes interessa [aos alunos] tanto, o diabo".
Em vez, porém, de ginásticas de metafísica ou de elucubrações escolásticas, lança mão de aportes da historiografia bíblica para mostrar as várias e contraditórias figurações que o "mal" adquire no Velho e no Novo testamentos. Para quem está acostumado à doutrina católica tradicional do pecado, calcada no adágio
"omne bonum a Deo, omne malum ab homine" (todo
bem provém de Deus, todo mal provém do homem),
não deixa de ser surpreendente aprender com Blank
que em camadas mais primitivas do texto bíblico jaz a
convicção paradoxal de que o Mal é também obra de
Deus, o que o livro de Isaías expressaria assim: "Eu
formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio
a desgraça: sim, eu, Iahweh, faço tudo isto" (Is 45,7).
O mais importante, porém, para ele, é não esquecer
o que faz do Evangelho, segundo a própria etimologia
da palavra, uma "boa nova" ou boa notícia, a vitória
de Cristo sobre o Mal. "Nós carregamos a herança de
uma catequese da ameaça dos séculos passados, em
grande parte inconsciente. Temos de recuperar a boa
nova, nos conscientizar da catequese da ameaça para
poder superá-la." Mas não é só essa intenção teológica
e pastoral que justifica o recuo historiográfico à "demonologia" bíblica. Há também o fato de que "hoje se
faz muito show em torno da questão do demônio, e o
padre precisa de bases sérias para entender onde está a
verdade e onde começa a fantasia".
De novo, a cultura "científica" vem em socorro a um
movimento de auto-exame e de distinção da igreja ante a sua "sombra", não só passada -a memória traumática de obscurantismos-, como presente -os
neopentecostais, célebres pelas sessões de "descarrego" espiritual, entre outras práticas mágicas que recuam aos primórdios do próprio catolicismo. Blank
mostra grande satisfação em lecionar para seminaristas. Questionado se ele não acha que a regra da proibição do casamento não é causa e fruto de uma "demonização" da sexualidade e, portanto, da totalidade da
vida terrena, ele discorda, diz que, afora um ou outro
caso, o que percebe em seus pupilos é muita alegria e
bem-estar com a opção que fizeram.
Quem não se convence a princípio desse retrato positivo pode ter menos motivo de suspeita ao deparar
com um seminarista, Reinaldo Braga, 37, em local no
mínimo improvável: a entrada do teatro Sérgio Cardoso, minutos antes da estréia de "Memórias do Mar
Aberto", adaptação de Consuelo de Castro para a tragédia "pagã" de Medéia, a feiticeira que, enlouquecida
de ciúmes por Jasão, mata os próprios filhos. Ele afirmou adorar ir ao cinema e ao teatro, que considera
"superimportantes" para sua formação. A reportagem do Mais! havia encontrado Braga na manhã daquele dia, na faculdade de Assunção, que não atende
apenas a alunos da arquidiocese, mas também de várias congregações e ordens, como a Ordem do Sagrado Coração de Jesus, de que Braga é integrante.
Braga prepara-se para enfrentar o último desafio do
curso de Assunção: o exame oral, que poderá envolver
os principais conteúdos teológicos aprendidos ao longo dos quatro anos de estudo. Ele mostra já destreza
de argumentos ou, ao menos, tirocínio para verdadeiros "tours de force" quando lida com questionamentos de outra natureza: por exemplo, o tema da camisinha ("por que o Ministério da Saúde não adverte que a
fidelidade conjugal também não traz Aids?") ou dos
padres pedófilos ("A igreja era a maior opositora à
guerra, à postura bélica do Bush. E é contra o homossexualismo. Ela enfrenta dois movimentos muito fortes, e isso provoca tentativas de revanche").
Conclamação
O papa João Paulo 2º divulgou na
última terça-feira uma carta "Aos Sacerdotes", por
ocasião da Quinta-Feira Santa. No texto, conclama
clero e os fiéis de todo o mundo a orar "pelas vocações,
pela perseverança dos chamados à vida sacerdotal e
pela santificação de todos os sacerdotes". Afirma que
"nunca é suficiente o número dos presbíteros para dar
resposta às crescentes exigências da evangelização e
do cuidado pastoral dos fiéis". O papa ainda se refere a
"algumas partes do mundo", sem especificá-las, em
que a "escassez faz-se hoje sentir com maior urgência,
porque diminuem as fileiras de sacerdotes por uma
insuficiente substituição das gerações. Noutras [regiões], graças a Deus, assiste-se a uma promissora primavera vocacional. Além disso, vai aumentando no
Povo de Deus a consciência de dever rezar e trabalhar
ativamente pelas vocações para o sacerdócio (...)".
O comunicado do papa é reflexo da realidade contraditória das vocações sacerdotais em nível mundial.
De um lado, uma "primavera vocacional", centrada,
como lembra Benedetti, em áreas periféricas do planeta, como o Brasil. De outro lado, a tendência do que a
socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger chama de
"descatolicização da Europa". Em meio a esse impasse, a complexa definição de que perfil assumirá e que
idéias defenderá o catolicismo nas próximas décadas.
Texto Anterior: A evangelização, os evangélicos e a apropriação do discurso científico Próximo Texto: Lições de solidariedade Índice
|