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O SOTAQUE TEXANO DA RAZÃO DE ESTADO
Márcio Senne de Moraes
da Redação
Professor de filosofia da Universidade Estadual de
Campinas, Roberto Romano está lançando "O Desafio
do Islã e Outros Desafios" (ed. Perspectiva), em que debate
os grandes impasses e problemas que pairam sobre as sociedades ocidentais. "Há um grande perigo quando [George W.] Bush proclama, mesmo que implicitamente, a superioridade do mundo ocidental. Ele usa a razão de Estado
com sotaque, o que a torna quase ininteligível para outros
países ou outras culturas", diz o autor de, entre outros,
"Conservadorismo Romântico" e "Lux in Tenebris", na
entrevista a seguir.
O sr. diz que o ideal iluminista de transparência foi destruído pela razão de Estado. Qual é a conseqüência disso?
A conseqüência é que houve, concomitantemente,
um espalhamento da razão bélico-tecnológica e da
estratégia, utilizadas pela razão de Estado, e que não
existiu uma disseminação da base da própria razão,
que é muito mais ampla que a razão de Estado.
Se há um ideal de razão, que foi herdado dos gregos, elaborado pelos romanos e teve uma forte tintura do pensamento judaico-cristão e do islã, ele acaba
sendo desprezado nessa lógica. Se desconsiderarmos o que foi feito no mundo islâmico no que tange
à matemática, à ótica, à medicina e à transmissão dos
textos filosóficos gregos à cultura cristã, não teremos
a totalidade da experiência histórica da razão.
Com a expansão do Ocidente -feita a partir de
uma base tecnológica herdada de outras culturas-,
houve uma fragmentação do fato racional. Nos movimentos atuais, que substituíram os movimentos
pela descolonização, existem as microrrazões que
operam com uma lógica própria. Ainda não há, portanto, uma possibilidade de diálogo desses vários
segmentos com um fundo racional mais amplo.
Há as grandes potências, que usam um idioleto da
razão, como no caso de Bush e de Tony Blair, e os vários movimentos terroristas que operam segundo
seus idioletos. Há uma espécie de babel política, cuja
saída é praticamente impossível, já que cada um desses setores tem sua lógica própria. Isso impede que o
sonho de regulação universal seja concretizado.
Mas o projeto da paz perpétua não é algo utópico?
Sim, na prática. Contudo ele contém uma idéia de
razão, da qual Kant é o grande representante, que
pôde modificar um pouco o antigo status quo. O
problema é que, na vida pública, nunca há ganhos
definitivos. Gosto de uma frase de Diderot, que era
visto como alguém que acreditava no progresso, que
diz que uma nação pode chegar a um nível bastante
elevado de civilização e, em seguida, regredir.
Nesse contexto, as políticas aplicadas pela atual administração americana são um retrocesso?
Sim. Há um grande perigo quando Bush proclama,
mesmo que implicitamente, a superioridade do
mundo ocidental. Ele observa as prioridades do Ocidente a partir de uma lógica privada e usa a razão de
Estado com sotaque, o que a torna quase ininteligível
para outros países ou outras culturas.
A disputa ocorrida na ONU entre a União Européia, liderada pela França e pela Alemanha, e os EUA
mostra essa impossível tradução da razão de Estado
americana. Todavia não se trata apenas de um fenômeno de lógica ou de racionalidade. Há uma disputa
pelo poder. Paris e Berlim não têm uma atitude filantrópica, já que têm planos típicos de uma potência.
A mídia, segundo seu livro, tornou-se um mero instrumento da política externa americana, que é classificada
de "xenófoba". Não há mais imprensa livre nos EUA?
Não, não posso imaginar que, em algum lugar do
mundo, não haja ao menos um pouco de liberdade
de imprensa. Por uma questão filosófica, não creio
que tenha existido na história um Estado totalitário
ou uma sociedade verdadeiramente totalitária.
Nesse caso, não haveria nenhuma possibilidade de
ruptura ou de movimentação nesses Estados. Se dissermos que a URSS ou a Alemanha nazista foi um totalitarismo pleno, negligenciaremos as resistências
silenciadas e as fraturas, imaginando que houvesse
um bloco indissolúvel entre a sociedade e o Estado.
Até na URSS, havia imprensa clandestina. No caso
americano, até na grande imprensa, existem fraturas
e vozes divergentes, embora haja uma tentativa de
controle por parte do governo. O Estado americano
tem uma tradição democrática que ainda não foi
vencida pelas tendências encarnadas por Bush. Como o momento em que escrevi meus textos era muito tenso, talvez meu tom reflita essa tensão.
O princípio que guia a guerra ao terror liderada por Bush
é: "Nós contra eles". Que impacto esse princípio tem sobre o mundo islâmico?
O efeito é devastador. A retórica de Bush é algo surpreendente para mim, pois a sociologia e a antropologia americanas são muito refinadas, tendo uma
grande capacidade de influência sobre as decisões
políticas e sobre os sistemas de regulação. Noto que
o padrão da sociologia dos EUA continua alto. Mas o
que acontece com esse saber quando um grupo essencialmente fundamentalista assume o governo e
utiliza um discurso tosco sobre diferenças culturais?
Temos algumas pistas quando vemos que até textos
da CIA foram negligenciados pelo governo em alguns casos. Trata-se de algo assustador.
No caso de um governo que tem uma forte vontade de dominar, seria vital levar em conta as diferenças culturais para buscar estabelecer pontes, deixando de lado, portanto, a idéia de que o jogo é travado
entre "nós" e "eles". Há um tipo de autismo nos EUA
que leva a atos nocivos a seus próprios interesses.
Qual é a razão desse fenômeno?
Uma das causas internas é o fato de o exercício da
Presidência ter-se tornado muito forte. Ou seja, o Legislativo é cada vez mais subordinado ao Executivo.
Essa atribuição ditatorial do presidente deixou o
Executivo menos atento ao diálogo com sua própria
sociedade e com países estrangeiros. O descolamento do Executivo do restante do Estado é perigoso.
Qual é o grande desafio representado pelo islã?
Ele diz respeito ao "nós" usado pelo governo americano. É tentador para nós, que vivemos num meio
impregnado de valores cristãos, acusar o islã de ser a
matriz do terrorismo. Isso faz com que esqueçamos
nossa própria história. Afinal, há uma tradição na
cultura judaico-cristã de uso da adaga para fazer justiça. Isso foi muito usado nos séculos 17 e 18.
Contudo não podemos esquecer que temos grande responsabilidade pela tecnologia e pela racionalização do terror. Temos doutrinas, lógicas e técnicas.
E, quando se trata do terror político mais radical, devemos lembrar que ele foi inventado na cultura ocidental, tendo até dado início à Primeira Guerra
Mundial -começada após o atentado de Sarajevo.
Assim, o desafio do islã é o nosso desafio. Só poderemos entender o terrorismo islâmico se compreendermos nosso próprio terrorismo. É por isso que
quis pôr em meu livro um texto sobre Erasmo, um
pensador clássico ocidental que pregava uma relação de tolerância com o islã.
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