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O paraíso perdido do conhecimento
Peter Burke
É comum hoje falar da "organização do conhecimento" como se a
produção do conhecimento ocorresse em uma grande fábrica. Nessa organização há lugar para diferentes
papéis intelectuais. De fato, com certeza
é preciso haver uma variedade considerável de tais papéis; para administradores intelectuais, por exemplo, para integrantes de equipes de pesquisa e para
eruditos isolados.
Além dos milhares de profissionais
que atuam nas diversas áreas de conhecimento, há também um papel, mesmo
hoje, para o amador e também para o
polímata, o erudito que se dedica em casa a muitas (ou pelo menos diversas) disciplinas intelectuais. O polímata ainda
não está totalmente extinto enquanto espécie intelectual, mas com certeza está
ameaçado.
A palavra "polímata" surgiu no século
17. No mundo antigo e na Idade Média
européia, não se falava em polímatas
porque se supunha que os eruditos tivessem um vasto aprendizado e que alguns
aspirassem ao "enciclopedismo", em outras palavras, a um conhecimento de todo o "curso" ou "currículo" de estudos
(esses termos originalmente evocavam
uma imagem vívida de atletas intelectuais, de antigos estudantes gregos correndo em volta de um estádio).
Mau sinal
No século 17, no entanto,
a nova palavra "polímata" se tornou corrente em latim, francês, inglês e alemão.
Pode-se dizer que a invenção da nova palavra foi um mau sinal. De qualquer forma, foi um sinal da crescente consciência
da existência de um problema, o problema do que pode ser chamado de uma
crescente "crise de conhecimento".
Graças à descoberta do Novo Mundo e
à revolução científica, boa parte do novo
conhecimento entrou em circulação na
Europa, e a prensa tipográfica permitiu
que esse conhecimento, mais do que
nunca, atingisse um número muito
maior de pessoas.
Infelizmente houve um preço a pagar
por esse progresso intelectual. Em 1550
já começaram a surgir reclamações de
que tantos livros haviam sido impressos
que ninguém tinha tempo nem sequer
de ler os títulos, muito menos de descobrir os conteúdos. No final do século 16,
alguns europeus liam a história de dr.
Fausto, um homem com uma sede insaciável de conhecimento, enquanto outros assistiam a uma peça de teatro sobre
o mesmo tema.
No entanto Fausto não foi apresentado
aos leitores ou espectadores como um
herói, mas como uma advertência que
teve um final infeliz, sendo arrastado para o inferno no final da peça. Em todo caso, se Fausto era incapaz de aprender o
que queria saber sem a ajuda do demônio, então o velho ideal enciclopédico de
conhecimento universal estava certamente ameaçado.
Em 1600, começava a tornar-se impossível dominar todos os campos do conhecimento acadêmico (sem contar os
muitos tipos de conhecimento prático) e,
por essa razão, os relativamente raros
eruditos que faziam descobertas em várias disciplinas diferentes vieram a ser
conhecidos como "polímatas". Esse talvez seja o termo mais apropriado para
descrever Francis Bacon e Gottfried Wilhelm Leibniz, que hoje são mais conhecidos como "filósofos", apesar de a filosofia ser apenas uma das áreas às quais
fizeram contribuições originais.
Leibniz, por exemplo, fez importantes
contribuições à matemática, história, direito e linguística. A carapuça de polímata também serviu ao jesuíta alemão
Athanasius Kircher, que escreveu (entre
outras coisas) sobre China, Egito, magnetismo, matemática, mineração e música. Da mesma forma, Isaac Newton não
se restringiu aos estudos da gravidade e
da ótica, que lhe valeram sua reputação
internacional. Estudou sobre cronologia
e alquimia e atuava na vida pública como
Mestre da Casa da Moeda, certificando-se de que as moedas ali fabricadas eram
de boa qualidade.
No século 18, no entanto, os estudiosos
foram obrigados a ser mais modestos. As
enciclopédias, que antes haviam sido
compiladas por eruditos individuais, foram entregues a equipes de colaboradores, como as 135 pessoas que escreveram
a famosa "Encyclopédie" francesa, sob a
direção de Denis Diderot. As enciclopédias estavam substituindo o enciclopedismo. Em outras palavras, cada vez
mais os eruditos buscavam informações
quando precisavam, em vez de saberem
a resposta de antemão.
Em 1550 já começaram a surgir reclamações de que tantos livros haviam sido impressos que ninguém tinha tempo nem sequer de ler os títulos
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"Homem multifacetado"
No século 19, o surgimento de várias palavras novas, como "perito", "profissional",
"cientista" e "especialista", foi um sinal
de que a divisão do trabalho intelectual
havia se expandido ainda mais. Em épocas anteriores, o curso universitário básico para todos era constituído das sete artes liberais, que iam de retórica a astronomia, mas, depois de 1800, estudantes
começaram a se especializar em uma disciplina de um "departamento" (outro
termo novo). Seus professores também
estavam se tornando especialistas.
Houve uma certa resistência à tendência, notadamente na Inglaterra, onde o
ideal do "gentleman" amador persistiu
até o século 20, mas a especialização acabou triunfando. Surgiu um abismo entre
as ciências naturais e as humanidades (as
famosas "duas culturas"), seguido pela
separação entre física e química, sociologia e psicologia e assim por diante.
Foi nesse contexto que o historiador
suíço Jacob Burckhardt, ele próprio artista, poeta e músico, bem como jornalista e historiador, descobriu o tipo que denominou o "homem multifacetado" do
Renascimento, incluindo Leonardo da
Vinci. Durante o próprio Renascimento,
uma ampla variedade de interesses intelectuais não foi reconhecida. Na época de
Burckhardt, Leonardo tornou-se o símbolo de um "paraíso perdido" intelectual
e um meio para que o historiador criticasse seu próprio tempo.
A divisão do trabalho intelectual, como
a divisão do trabalho de forma geral,
possui vantagens óbvias. Coletivamente,
a raça humana sabe mais hoje do que
nunca antes. O preço que pagamos, no
entanto, é alto. Como indivíduos, sabemos menos do que nossos ancestrais, ou,
mais exatamente, sabemos cada vez mais
sobre cada vez menos. Tentativas de lutar contra a tendência à especialização e à
fragmentação têm sido feitas, mas seu
sucesso tem sido limitado. A história intelectual é a história de um longo afastamento do conhecimento geral acompanhado por uma série de ações significativas de retaguarda.
Em nível coletivo, têm havido muitas
tentativas de promover abordagens interdisciplinares, como no caso dos "estudos culturais", uma combinação de literatura, história, sociologia etc. O problema é que, a partir da segunda geração,
novas disciplinas tendem a se formar, e a
revolta contra a especialização precisa
recomeçar do zero.
Alguns polímatas do século 20 também conseguiram resistir às pressões da
especialização. No Brasil, eles incluíram
Gilberto Freyre. Nos Estados Unidos,
pensa-se em Lewis Mumford, que escreveu sobre arquitetura, cidades e sociedade e que gostava de se auto-intitular um
"generalista", não um especialista. Na
França, havia Michel de Certeau, que se
considerava modestamente um historiador, mas também estudou psicanálise e
fez contribuições à antropologia e à sociologia, bem como à filosofia e à teologia. Na Inglaterra, Joseph Needham
atuou como bioquímico antes de se dedicar à história da China.
Espera-se que eles não sejam os últimos dos dinossauros. Mas certamente o
serão, caso as universidades e os governos não considerarem a construção de
um habitat intelectual no qual as espécies
ameaçadas possam sobreviver.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar
Editor) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Leslie Benzakein.
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