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EM "SEXO SOLITÁRIO", THOMAS LAQUEUR DEFENDE QUE A DEMONIZAÇÃO DA MASTURBAÇÃO, A PARTIR DO SÉCULO 18, FOI UMA TENTATIVA DE RESOLVER DILEMAS POLÍTICOS, ECONÔMICOS E SOCIAIS DO PERÍODO
O lado escuro do iluminismo
Mês Nacional da Masturbação/Divulgação
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por Jurandir Freire Costa
Thomas Laqueur é um historiador de Berkeley,
especialista em história social e da medicina. Em
1992, publicou "Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud" (ed. Relume-Dumará).
Agora faz chegar ao leitor "Solitary Sex - A Cultural History of Masturbation" (Sexo Solitário - Uma História
Sexual da Masturbação, ed. Zone Books, 501 págs.).
No primeiro livro, Laqueur analisou a invenção cultural da bipolaridade sexual humana. Nem sempre, dizia
ele, concebemos os seres humanos divididos em dois
sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século 18, a medicina só admitia a existência de
um sexo, o masculino. O que, atualmente, chamamos
de sexo feminino era visto como um sexo masculino
"frio" e "invertido". Ou seja, a mulher não possuía o
mesmo "calor vital" do homem, e, por isso, seu sexo
não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escroto, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio, e a vagina, o pênis.
"Modelo dos dois sexos"
"Sexo Solitário" segue as
linhas mestras desse estudo. O "modelo dos dois sexos", sustentava Laqueur, foi um artifício criado para
aproximar a desigualdade real entre homens e mulheres do ideal igualitário das revoluções republicanas. De
forma semelhante, o surgimento da "masturbação como problema moral" foi uma tentativa de resolver dilemas políticos, econômicos e sociais existentes no mesmo período histórico.
Em 1712, aproximadamente, diz Laqueur, um autor
inglês anônimo publicou um livro chamado "Onania".
O título aludia a Onã, personagem bíblico do Gênesis
38.8-10, culpado do pecado do coito interrompido. O
texto, reeditado várias vezes, circulou por toda a Europa. Em 1762, Tissot, o célebre médico suíço, retomou o
tema em "L'Onanisme" e conferiu à masturbação o selo
de problema médico, digno de apreciação científica.
Desde então, todas as cabeças coroadas da intelectualidade européia, de Rousseau a Kant, de Kraft-Ebing a
Freud, se deram a tarefa de explicar a natureza da peste
que punha em risco o equilíbrio da espécie e da sociedade. O "vício solitário", o "auto-estupro", a "auto-emasculação", o "auto-abuso" se tornou a quintessência do
Mal e, nos finais do século 19, apavorava adultos e crianças em escolas, conventos, lares burgueses, quartéis e
fábricas. A indústria e o comércio, por seu lado, responderam prontamente ao apelo do mercado. Um arsenal
de "poções e pílulas antimasturbatórias", "alarmes contra a ereção", "bainha para pênis", "luvas de dormir"
etc. foi fabricado para combater o "vício secreto".
Esse cenário moral permaneceu mais ou menos intocado até os anos 50-60 do século 20. Daquele momento
em diante, a difusão das idéias psicanalíticas e antropológicas, o movimento da contracultura, o feminismo, as
políticas de identidade sexual e, por último, as "novas
descobertas" médicas terminaram por reverter a tendência dominante. A masturbação deixou de ser "um
vício doentio" para se tornar, nas décadas de 70 e 80,
quase uma virtude sanitária. Finalmente, nos dias
atuais, o relevo moral da masturbação caiu em desuso.
O inimigo número um do Ocidente
A "des-moralização" da sexualidade na mídia, o fácil acesso aos
sites pornográficos na internet e a suposta neutralidade
do discurso biológico sobre o sexo jogaram a pá de cal
definitiva em um assunto que, durante três séculos,
consumiu esforços intelectuais e sofrimentos de milhões de seres humanos.
Feita a descrição, vem a interrogação. Como, pergunta Laqueur, algo tão tolo quanto a masturbação pode ter
oprimido a consciência moral de tantos indivíduos por
tanto tempo? A resposta sugerida é extremamente interessante. Não há, diz Laqueur, uma "causa" da obsessão
ocidental pela masturbação. O que existiu foi uma teia
de crenças políticas, práticas econômicas, normas de
convívio familiar e perplexidades morais que acabaram
por fazer do ato masturbatório o inimigo número um
da moral do Ocidente, desde o século 18.
A questão da masturbação foi o efeito colateral imprevisto do choque entre o individualismo possessivo e o
bem-estar da sociedade. O ato de se masturbar se
tornou o "vicio emblemático" da cisão entre os interesses privados do burguês e os interesses públicos do cidadão. Outros vícios, do mesmo gênero, assombraram
a mentalidade da época: o consumismo, o luxo, o egoísmo etc. Em todos eles, o problema central era o controle
da "imaginação", da "solidão" e dos "excessos" do individualismo, definido como fundamento natural da nova ordem cultural.
Cultura das sensações corporais
Em outras palavras, os ideólogos oitocentistas e novecentistas perceberam que teriam que frear o que eles próprios haviam
insuflado. O aumento do conforto material e do ócio; a
expansão do mercado da literatura novelesca e pornográfica; a adesão maciça à leitura em voz baixa; a hipertrofia da intimidade sentimental etc. produziram o gosto cultural pelo "sexo solitário". Donde a necessidade
de inibir o mau uso da fantasia, o desregramento do
egoísmo sadio e desejável. O excesso sexual era o "lado
escuro" da Razão e dos apetites naturais, que devia ser
eliminado para que as Luzes da civilização brilhassem
sem pontos de sombra.
O trabalho de Laqueur, contraposto ao etos atual, se
torna ainda mais eloquente. Primeiro, por mostrar que
a vontade de arrancar, a marteladas, moral de sexo foi
um dos mais desastrosos experimentos culturais do
Ocidente; segundo, por revelar a face ética de nossa era.
Hoje, estamos abandonando a idéia estapafúrdia de
que sexo e ética são irmãos siameses. O lugar moral do
sexo foi ocupado pelo corpo ou, como prefiro, pela cultura das sensações corporais. A mudança, contudo, não
se limitou a substituir a matéria-prima das práticas de
perfeição moral. O substrato da moral mudou -antes
era o sexo, agora, o gozo das sensações corporais-,
mas também sua finalidade. A moralidade sexual analisada por Laqueur tinha por objetivo a salvaguarda do
interesse de todos. O moderno adestramento moral do
corpo, ao contrário, começa e termina no circuito das
sensações corporais.
Outrora, queríamos uma sexualidade "sadia" e "virtuosa" para colocá-la a serviço da família, da raça, da religião ou dos valores da igualdade e da liberdade individuais; no presente, as asceses corporais visam apenas à
repetição da sensação prazerosa ou o novo "prazer"
prometido pela tecnologia e pela publicidade. Parte-se
de si para chegar a si.
Um novo moralismo
O "lado escuro" do individualismo veio, enfim, à luz, sem vergonha ou timidez. A
luta contra o sexo perdulário e egoísta resultou em nada. Pior que isso, o individualismo criou resistência aos
sermões moralistas e ressurge em uma variedade particularmente virulenta. Na cultura das sensações, o indivíduo começa a se desonerar de toda responsabilidade
em relação ao que faz a si e ao outro. Pouco importa se
seus desejos e ações venham a resultar em miséria e
morte de quem quer que seja, inclusive a sua. Se algo vai
mal, é por culpa dos "pais", do "trauma na infância",
dos "políticos", dos "capitalistas", dos "comunistas", da
"televisão", da "sociedade de consumo" ou da medicina, que ainda não descobriu o "gene" que venha nos curar, sem que tenhamos que fazer esforço, da indolência
moral ou mesmo do pífio hábito de -"só de vez em
quando"- dar aquela "cheiradinha" escondida em latrinas públicas ou privadas.
O moralismo sexual foi repressivo, intolerante e, muitas vezes, homicida; o da cultura das sensações é obtuso,
leviano, medíocre e, cada dia mais, suicida. Um produziu famílias neuróticas, adultos obsessivos, crianças fóbicas e mulheres histéricas; o outro, famílias desagregadas, crianças insolentes e agressivas, homens cínicos e
desfibrados e mulheres puerilmente acuadas pelo pânico da velhice e da gordura. Não temos por que nos curvar, como ovelhas dóceis, à estupidez de nenhum dos
dois. Laqueur mostra que o que foi imperativo ontem
pode ser derrisório amanhã. E, quem sabe, o amanhã
pode começar hoje.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros,
"Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed.
Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 504 d.C.".
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