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"O AJUDANTE", DO SUÍÇO ROBERT WALSER, DRAMATIZA A ASCENSÃO E QUEDA DO BIZARRO PERSONAGEM JOSEPH MARTI
UM IDÍLIO EM RUÍNAS
Luiz Repa
especial para a Folha
Se continuamos a saber pouco sobre Robert Walser (1878-1956), salvo pelo curto e luminoso ensaio de Walter Benjamin (em "Obras Escolhidas
1", ed. Brasiliense), agora podemos ler enfim algo
dele, graças ao empenho de Zé Pedro Antunes em traduzir "O Ajudante".
Nascido em Biel (Suíça) no ano de 1878, encontrado
morto em 1956, na neve de Herisau, a pouca distância
do instituto psiquiátrico em que passara os últimos 23
anos, o escritor teve origem e existência modestas, perambulando de cidade em cidade, sempre com cargos
subalternos. Durante a vida e mesmo décadas depois da
morte, não encontrou reconhecimento, a não ser o de
autores como Kafka, Hesse, Musil, Canetti.
Os longos passeios e a escrita torrencial lhe teriam sido um refúgio; o fato é que os três primeiros romances,
"Os Irmãos Tanner", "O Ajudante" e "Jakob von Gunten", vieram um atrás do outro (de 1907 a 1909) e que
sua obra posterior cultivou ininterruptamente quase
todos os gêneros, sobretudo as narrativas breves, para
no fim ser abandonada com a internação. Boa parte dela são os "microgramas", narrativas em caligrafia gótica
a tal ponto minúscula que demorou décadas para ser
decifrada.
Do apego ao mínimo, ao singelo quase indelineável,
dá testemunho também "O Ajudante". Ele conta os seis
meses da vida de Joseph Marti como ajudante de escritório na admirada vila do engenheiro e inventor Tobler,
enriquecido por uma herança que lhe permite por algum tempo dar uma moldura de grande burguesia para
uma família pequeno-burguesa e culturalmente medíocre. Os
gastos com festas, prazeres diários e invenções de pouco atrativo já lhe vinham consumindo a fortuna.
Ruína progressiva, desgaste inevitável E, objetivamente, é a isso que se resume a ação: a ruína progressiva, a instabilidade crescente, o desgaste inevitável entre o empregado, o patrão e sua esposa. Mas o desastre certo, a perda da vila, não é descrito. A narrativa começa com a admissão de Joseph; cessa com sua demissão.
Somente o lapso de tempo e o espaço se definem. A ambiguidade constante, tanto das personagens como da narrativa,
parece espelhar algo da mistura, tão atual, de trabalho e vida
doméstica, à qual se junta a exigência também de ser autônomo, criativo e entusiasmado nos afazeres. Desde o início Joseph não sabe bem quais são suas atribuições, os limites de
morador e subordinado.
Tampouco vem a saber (e receber) seu salário, ao contrário
da criada, um "rebento do povo", não um "homem" como
ele. Como as criações de Tobler não vingam, busca justificar a
boa comida e o belo recanto tornando-se um "faz-tudo". Isso
lhe é cobrado pelos patrões e por ele próprio. A culpa de não
estar à altura, de não poder evitar o declínio, corresponde à
imposição da autonomia na subordinação. Mas só em parte.
As contradições do "bizarro" Joseph são as de um Sancho
Pança que se recrimina pela verdade. Da constatação óbviasobre o mundo de aparências não segue uma ação consequente, mas somente autocríticas e relativizações. Ele quer
manter-se na ilusão ao mesmo tempo em que é repelido dela.
E talvez por isso preserve ainda uma certa dignidade. Ele não
deixa de responder às humilhações, levando a sério o princípio de reciprocidade decantado pelos Tobler (embora degradem uma das filhas e mimem outra sobremaneira). Não é um
ressentido como todos a seu redor, embora tenha todos os
motivos para sê-lo. E a superioridade moral não lhe serve de
compensação estóica, pois tampouco deseja o sucesso social.
Segundo Benjamin, essa recusa, comum a todos os personagens de Walser, é de natureza epicurista: "Eles querem desfrutar a si mesmos". E desfrutariam a vida com a pureza e a
sensibilidade dos convalescentes.
No caso do ajudante, esse princípio aparece também como
existência provisória, precária e constrangida, através da qual
o ínfimo encontra a sua beleza. Mas que no todo, longe de ser
o buscado consolo, revela-se desesperançada, como um brilho efêmero na escuridão fazendo nos lembrar o que vemos.
À cisão da personagem soma-se a duplicidade narrativa.
A perspectiva do narrador acompanha quase sempre a de
Joseph, como se estivesse ao lado dele, conforme sugere Dagmar Grenz ("Die Romane Robert Walsers"), às vezes complementando-a, às vezes ironizando-a, numa narrativa que se
constitui de monólogos, lembranças, fantasias, cartas, diários
interrompidos. E, se a exposição cênica e o pequeno paraíso
confirmam que se trata de um idílio, este se revela "sinistro"
("Grenz"): também a natureza vai empalidecendo na progressão objetiva, irresistível, da queda.
Luiz Repa é doutorando em filosofia na USP.
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