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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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Nos poemas de "O Mundo como Idéia", Bruno Tolentino demonstra apurado domínio técnico, unindo o cômico à sacralidade solene

Gesto besta, sublime intangível

Alcir Pécora
especial para a Folha

O novo livro de poemas de Bruno Tolentino -"O Mundo como Idéia"- é precedido de dez ensaios que nada acrescentam ao livro. Contudo, mesmo perdida a centena inicial de páginas, restam "40 mil palavras em mais de 7.000 versos", nas contas do autor. O tema unificador do livro, de acordo com os ensaios, é o da resistência ao que chama de "malefícios" ou "sereias da Idéia", o "remanso especulativo" que pretende substituir-se às "perplexidades da condição mortal". Entram no remanso o "frio vazio do conceito", a "arte pela arte", a "marmorização moral do ser"; o "espírito de sistema"; o "idealismo alemão"; o "fascínio da abstração" e tudo que recusa o "mundo real", com sua "lição de trevas". Embora o livro filosofe a esse respeito o tempo todo, não consigo achar que o tema da Idéia como desastre da arte que, a partir do humanismo, se autonomiza como espírito e se afasta da vida mortal, seja o seu verdadeiro núcleo de interesse. Isso parece um déjà vu panofskiano, ainda que às avessas, para ser o verdadeiro núcleo de sua excelência. Longe dessas dicotomias populares entre "mente" e "coisa", "razão" e "vida", "ideal" e "real", são bem outros os atrativos poéticos dos poemas. O primeiro e mais básico deles é o domínio técnico dos meios da poesia demonstrado por Tolentino. Operando com formas fixas da tradição da poesia mais elegante e cerebral, como o soneto e a terça-rima, ele obtém um raro efeito de narração fluente, com palavras muitas vezes na ordem direta e sintaxe escorreita, ajustando-se mansamente à regularidade dos versos e ao padrão das rimas, sem prejuízo da variedade rítmica. O léxico é precioso, a matéria, erudita, e o tom, sentencioso, mas entrecortados por uma riqueza esquisita de registros que admite o ordinário, às vezes, na mesma frase que busca o sublime. As metáforas são abundantes e congruentes, o que, nele, tanto amplia o colorido do enunciado, quanto facilita a expansão perifrástica do tema. Tolentino possui, ainda, notável controle da disposição minuciosa e consequente dos argumentos. Emulando a poesia galante e reflexiva de modelo humanista, análoga da pintura que diz abominar, dá inequívocas mostras de "sprezzatura", isto é, de facilidade no fazer mais técnico e esforçado, o que relativiza ou nega o discurso de seu programa antinômico.

Artistas célebres
Um segundo aspecto que chama a atenção em todo o livro é a abundante referência a artistas célebres. Mas, se o tema do grande artista se liga facilmente ao da Idéia, determinado com base nos pintores do Renascimento toscano, Tolentino o pratica sobretudo no cruzamento da crônica esnobe do convívio intelectual mundano com o desempenho das tópicas da senectude e da imaginação da hora da morte. Daí acentuar a sua própria condição de discípulo ou aprendiz devotado entre os grandes, numa espécie de encenação do lugar retórico do "sexto entre eles", com que Dante celebrava, no Limbo, estar em companhia dos cinco maiores poetas da Antiguidade. Aqui parece inevitável certo efeito de deslumbramento do poeta de província acolhido nos salões dos grandes, no centro da cultura, mas os seus desdobramentos não são tão óbvios: do esnobismo do círculo iniciático até a sacralização do cânone, Tolentino constrói atentos e belos retratos morais. À maneira, agora, do aristocratismo rebelde do século 17 francês, a gravidade dos retratos é articulada a um anedotário que os tempera com um humor meio amalucado (como quando, em "Do Matinal Milagre", entre tantos exemplos, Elisabeth Bishop ouve "quisto" quando ele lhe perguntava por "Cristo"). E entra aqui um terceiro aspecto decisivo do livro: há algo de cômico na sacralidade solene de Tolentino, que está longe de ser casual. É mesmo o que opera alguns dos mais surpreendentes e eficazes efeitos de sua poesia. Em "Santa Reparata Deixa Florença", compõe uma prosopopéia da imagem da santa, que acusa a pouca fé dos esnobes da cidade; à imitação de um estilo pedestre, oposto à erudição afetada, a santa quase soa à Roberto Carlos ("eu voltei/ para esquecer ou para perdoar") e comove com uma espécie de idiotia singela.

"Sapo com ar de Kant"
Em "Travessias", narra uma viagem iniciática por um gelado deserto eslavo, na qual a forma de parábola evangélica se mescla com a graça esquisita das imagens tiradas de frases feitas: "Frio de pinguim"; "sorvete esquecido na brancura"; "miolo mole e delirante" etc. Mas o melhor do poema é a composição de uma cena sensacional em que, frente a frente com um corvo que apenas esperava a sua morte iminente de frio para atacá-lo, o poeta, desafiador, atira-lhe um sapato, enfiando os pés descalços no gelo.
A cena é hilária, sem deixar de ser o centro de seu propósito, digamos, edificante, pois sua versão peculiar da tentação de Cristo no deserto postula a sacralidade (à Blake) da imprudência num mundo oco e previsível.
Em "Dobrada à Moda do Morto", que parodia o poema de Pessoa, Tolentino fala de uma apoplexia sofrida num restaurante, durante a qual se incomoda menos com a ameaça da própria morte do que com o olhar que lhe deitara um sujeito esnobe, um "sapo com ar de Kant". Indigna-se contra o decreto oculto que permitia que vivesse o sapo enquanto morria o poeta. A conclusão da piada não é menos grave ou moral por conta disso: a experiência ensina que é preciso cair para entender a eleição divina, que há providência e benefício na dor -uma lição que, "bundão moribundo", não tinha percebido. Em "O Pêssego", após propor o sexo como participação do corpo na luz divina, afirma que frequenta o "templo da feira" e que a "fome da alma devora as coisas"; isso literalmente deveria explicar por que sente tesão por pêssegos, numa espécie de avesso da alucinação da carne.


Está aí -nesse habilíssimo jogo de contrastes entre o tom grave e o leviano, o arrebatamento dramático e o cômico- a baliza formal da questão mística do autor


Poesia e oração
Em "Lição de Modelagem", expõe a leitura que teria feito, numa biblioteca -de Oxford, claro-, ao longo da madrugada, do "Adversus Hereses", de santo Irineu. Explica que o santo combina o sentido da graça com o da omissão e da desconfiança, que ensinam o homem a aceitar a fraqueza, livrando-o da "ideologia do esforço" e do "terror de errar". O efeito de singeleza dos hexassílabos repletos de expressões feitas ("lhe cai outra telha na cabecinha oca"; "que a alma durma de touca"; "desconfiômetro"), combinado à erudição da matéria e à solenidade do lugar, resolve-se, enfim, na aplicação da tópica da "vanitas", isto é, do desengano da vaidade. Contra a soberba do intelecto e a presunção de autonomia do saber, a santidade se propõe como um "amolecer" da vontade diante do mistério divino, de tal modo que a atenta leitura do santo se transfigura numa espécie de milagre da fé. A poesia ajusta-se à oração. "Ao Divino Assassino" traz uma didascália a avisar que o poema foi escrito na igreja do "Sacre Coeur", em Paris, em momento próximo ao do acidente de elevador em que morreu a atriz Anecy Rocha. Nesse tipo de doutrina de ocasião, o procedimento de Tolentino se evidencia: ajoelhado diante do altar, o poeta rebela-se perante a crueldade do desígnio divino e duvida do amor de Cristo pela humanidade. A composição solene dessa perplexidade se casa então com expressões totalmente usuais ("arrancar a muque"; "fazer gato e sapato"; "suar sangue"), com inconfidências a respeito da soberba da família Rocha (Glauber é referido como "o irmãozinho") e, enfim, com a crônica dos últimos milagres do Sagrado Coração, contrapondo-os aos decretos de Deus "assassino" e "vândalo". Está aí, se não me engano -nesse habilíssimo jogo de contrastes entre o tom grave e o leviano, o arrebatamento dramático e o cômico, o estilo asiático e o pedestre-, a baliza formal da questão mística de Tolentino. Aí também se evidencia a aporia que lhe é mais própria: como reconhecer Deus num mundo de destruição? A resposta alude menos ao que é análogo essencial desse Deus do que àquilo que lhe acentua o paradoxo com o humano e desfaz as ilusões essenciais da analogia. A teologia é negativa: discurso que se produz como "inania verba", remédio que apenas evidencia a dor insolúvel.

Fotografia do poente
Último exemplo: em "Ampliações de um Ocaso em Súnion", compõe a memória banal de uma viagem de lua-de-mel com a ex-mulher, na qual pondera a dificuldade de fixar a imagem vivida no poema ("tirar o sol da caneta").
Contudo, em vez de fazer o previsível louvor do inefável, é tolerante com o desejo de um turista americano empenhado em fotografar o pôr-do-sol grego, que nunca estará em sua máquina. O poema deixa deduzir, então, que a luz mais bela não se dá na grandeza análoga e única do Sol daquele dia, mas no seu contraponto com a cegueira cômica do turista instalado um tanto estupidamente naquele esplendor. Não é, não, o Sol -ou o Deus encoberto nele- que assoma como maravilha no discurso do poema: é a risada do gesto besta em meio à sublimidade intangível. Isso o que verdadeiramente maravilha e arrebata, animando a pintura do discurso.

Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp) e "Rudimentos da Vida Coletiva" (ficção, Ateliê Editorial).


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