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VÍTIMA ATÉ DE BOMBARDEIO AÉREO, SÃO PAULO FOI PALCO DE TORTURAS E EXECUÇÕES
SUMÁRIAS DURANTE OS 23 DIAS DA REVOLUÇÃO, QUE DEIXOU PELO MENOS 500 MORTOS;
PRESERVAÇÃO DE DEPOIMENTOS E DOCUMENTOS SOBRE O EPISÓDIO AINDA É PRECÁRIA
1924 o silêncio
José de Souza Martins
Na madrugada de 5 de julho de 1924, tropas rebeladas do Exército se deslocaram dos quartéis de
Quitaúna, em Osasco, e de Santana em direção
ao quartel da Força Pública no bairro da Luz, que
foi ocupado. Ali os rebeldes instalaram o Estado-Maior
das forças sob comando do general Isidoro Dias Lopes,
que incluíam oficiais e soldados da Força Pública de São
Paulo. Começava naquela manhã de um dia de trabalho a
Revolução de 1924, sangrento episódio das revoltas tenentistas que culminariam com a Revolução de Outubro de
1930, chefiada por Getúlio Vargas.
Ato contínuo, a estação da Luz foi tomada. O diretor inglês foi colocado sob ordens e notificado de que nenhuma
composição ferroviária se moveria sem motivo e autorização militares. Pediu licença, retirou-se por instantes, recolheu-se a um cômodo secreto da estação construída em
1900 e dali, por telefone, chamou o chefe da estação de
Santos, que já se encontrava sob controle das tropas federais. Comunicou-lhe que, quando desligasse o telefone, já
não seria o diretor da ferrovia, pois estava preso. Mesmo
que voltasse a lhe telefonar, não deveria ser obedecido. Dali em diante o chefe da estação de Santos seria o diretor.
Cabia-lhe comunicar o fato à empresa em Londres, pelo
telégrafo submarino. A ferrovia já não podia operar normalmente. Em poucas horas, a São Paulo Railway apresentava ao governo brasileiro um pedido de compensação
pelos danos e pela cessação de lucros. Quando construíram a estação, os ingleses já previram que um dia estes nativos ainda iam aprontar alguma coisa que não coincidia
com os interesses deles. É fascinante que no pacote de implantação de uma empresa estrangeira já viesse embutido
o contraveneno para as agitações sociais e políticas.
Em poucas horas, tropas federais deslocadas de navio
para o porto de Santos tomaram a estrada de ferro, a antiga São Paulo Railway, e conseguiram chegar até a estação
de São Caetano, pequena localidade de população predominantemente de origem italiana. De noite, um primeiro
entrevero entre rebeldes e legalistas ocorreu na estação do
Ipiranga. Combates ocorriam em vários pontos da cidade
entre rebeldes e forças leais ao governo federal. O próprio
Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo do Estado,
cujo presidente era Carlos de Campos, foi objeto de disputa armada. Era um alvo político e simbólico.
Durante 23 dias de um inverno particularmente duro, a
cidade de São Paulo e o seu subúrbio sofreriam a tragédia
da guerra civil. De uma população de uns 700 mil habitantes, 200 mil fugiram para o interior de São Paulo, lotando
os escassos trens disponíveis. Os que não puderam escapar, ou porque não tinham meios ou porque não tinham
parentes no interior ou porque não tiveram tempo, tentaram alcançar o subúrbio controlado pelas tropas legalistas
do Exército e da Marinha. A Cruz Vermelha organizou um
grande campo de refugiados na zona leste, não longe da
estação de Santo André, abrigando um enorme número
de famílias em barracas de lona, oferecendo-lhes a precária alimentação disponível. Numerosos moradores da cidade, impossibilitados de alcançar a estação da Luz, tentavam escapar para as saídas da cidade. A prefeitura chegou
a distribuir quase 35 mil refeições diárias para os que ficaram. Em pouco tempo, a população em pânico e faminta
começou a saquear armazéns de empresas. Mais de cem
empresas foram saqueadas. Cinqüenta anos depois da revolução, o balanço anual do grupo Matarazzo ainda registrava um haver pelos danos sofridos, especialmente
nos saques de farinha de trigo no moinho do Brás.
O presidente de São Paulo, que seria hoje o governador,
Carlos de Campos, com os secretários de Estado, aos quatro dias da revolta abandonou o Palácio dos Campos Elíseos e fugiu da cidade. Foi para a estação de Guaiaúna, nos
lados da Penha, na Estrada de Ferro Central do Brasil. Instalou o governo num carro ferroviário na perspectiva de
ter que se refugiar na capital federal.
Dali, as tropas federais do general Eduardo Sócrates
bombardeavam o centro da cidade e especialmente os
bairros operários, como o Brás, a Mooca, o Belenzinho, o
Cambuci, o Ipiranga. Bombas caíram em edifícios governamentais do Pátio do Colégio. Aquarteladas em São Caetano, as tropas do general Carlos Arlindo lutavam no Ipiranga, Cambuci e Vila Mariana. Foram muitos os mortos,
não só do Exército, da Marinha e da Força Pública, mas
também da população civil. No balanço final da situação
da cidade após a revolta, o prefeito Firminiano Pinto menciona 500 mortos nos bombardeios, que ocorriam sobretudo à noite. Mas Everardo Dias, o cronista da história
operária de São Paulo, exagera e menciona também centenas de trabalhadores executados pelas forças militares em
confronto, condenados em decisão sumária. Estava em vigência a lei marcial. Suspeita era toda a população civil.
Operários do que é hoje o ABC percorriam a pé, à noite,
os trilhos da São Paulo Railway na desesperada tentativa
de chegar a seus locais de trabalho na capital, atravessando a linha de frente no Ipiranga. Esforço inútil, porque as
fábricas já não funcionavam. Não raro eram surpreendidos por uma das forças militares em confronto, presos,
muitas vezes torturados para confessar que estavam espionando e a serviço do inimigo. Encontrei no arquivo de
uma congregação católica, em Roma, documento do vigário de São Caetano, localidade que ficara em território legalista, narrando sua visita ao general Eduardo Sócrates
para apelar pela vida de operários, seus paroquianos, que
iam ser executados pelo fútil motivo de tentar sobreviver.
Fala-se, também, nos militares capturados pelas forças legalistas e fuzilados.
Em 1974, fiz uma pesquisa nos bairros do Brás, da Mooca e do Belenzinho com moradores que, já adolescentes
ou adultos, viveram e sofreram diretamente as conseqüências da revolução. São detalhadas as narrativas dolorosas
dos sofrimentos e da tragédia. No Brás, casas explodiam
com famílias inteiras lá dentro, destroçadas pelas bombas
que caíam. Naquela época, muitas casas dos bairros operários tinham porões altos, que foram utilizados como refúgio pelos moradores e vizinhos. O refúgio não bastava. Era
preciso conseguir comida e água, expor-se ao risco de um
balaço dos atiradores que estavam por toda parte. E não
foram poucos os pais de família que morreram rastejando
até um poço ou até o que restava de uma despensa. Mortos
foram sepultados, em situação de grave risco para os sobreviventes, nos terrenos baldios das áreas atacadas.
Exumar os mortos
Um verdadeiro cemitério existiu
nos terrenos vazios do Ipiranga que ficavam atrás do museu. Mortos nos ataques e nos combates do Cambuci, do
Ipiranga. Era impossível levar os mortos até o cemitério da
Vila Mariana. Depois da guerra, grupos perambulavam
por esses cemitérios improvisados para exumar os mortos
em decomposição e levá-los para sepulturas definitivas
nos cemitérios da cidade. Em não poucas casas, em que
parte da família foi morta, crianças ficaram órfãs. Há alguns anos ainda se encontravam vítimas mutiladas pelas
bombas e tiros. Em São Caetano, uma família guardou
enormes cápsulas dos morteiros que foram encontradas
nos morros do Sacomã, zona de combate e frente de batalha. Durante muito tempo, a escola Matoso, na Mooca, ostentava a fachada picotada de tiros.
No dia 22, a menos de uma semana do fim da ocupação
da cidade pelas tropas revoltosas, aviões bombardearam a
cidade. São Paulo é, provavelmente, a única cidade brasileira que tenha sofrido bombardeio aéreo. O intuito das
forças federais era claro e já havia sido indicado em manifestação do Ministério da Guerra uma semana depois do
início da revolução: a destruição da cidade, se preciso, para
desalojar e derrotar os rebeldes. A riqueza de São Paulo e o
povo laborioso se encarregariam de reconstruí-la, foi o argumento. Panfletos foram lançados de avião conclamando
os moradores a deixarem a cidade para que a aniquilação
das forças rebeladas pudesse ser consumada com facilidade. Mesmo sem a desocupação da cidade (pouco mais da
metade da população nela permaneceu), os ataques foram
praticados como se a cidade estivesse vazia.
Hospitais e enfermarias foram improvisados, do lado rebelde no Mosteiro de São Bento, do lado legalista no Cinema Central, de São Caetano. Outros vários se espalharam
pela cidade.
O abandono da capital pelo governo do Estado deixou a
cidade no desamparo. Foi preciso improvisar uma polícia,
de que se encarregou Paulo Duarte, reunindo estudantes,
especialmente da Faculdade de Direito. Mas foi preciso
também improvisar governo, embora existisse um prefeito que permaneceu na função. O presidente da Associação
Comercial, que naquela época reunia industriais e comerciantes, teve que assumir funções governativas, determinar ordens, comandar decisões, tentar o armistício, propor negociações entre as partes, tentar evitar o caos. Seria
processado depois por isso.
A mitificação de esquerda da história operária omite a existência
de ativas organizações de direita, que também começavam a surgir
Nesse tempo, os operários estavam mal e precariamente
organizados. Hoje se mitificam as lutas operárias da cidade, se exagera na eficácia de suas organizações de esquerda. Em 1917, a greve espontânea e espetacular só não foi
um desastre porque o minúsculo grupo de anarquistas
acabou atuando como canal de organização e expressão.
Mas os trabalhadores da cidade não eram anarquistas, senão em pequeno número. Alguns outros eram socialistas e
em 1924 uns poucos comunistas ainda não tinham nenhuma presença significativa no meio operário. Os dirigentes
desses grupos eram na prática uma elite obreira, esclarecida e lutadora, mas sem massa para dirigir.
Além disso, a população operária se dividia indistintamente entre esquerda e direita. A mitificação de esquerda
da história operária omite a existência de ativas organizações de direita, que também começavam a surgir, como os
núcleos do Fascio e as Societá Dopo Lavoro, sem contar as
organizações católicas. Na precária organização do povo,
pesava muito mais do que a política a origem nacional e a
religião. Nessa época, convém não esquecer, no Brás, no
Belenzinho, na Mooca, em São Caetano, no Cambuci, falava-se cotidianamente italiano, na verdade dialetos, como
o vêneto e o napolitano. Eventualmente, em alguns cantos
da Mooca, o espanhol. A maioria da população da cidade
não falava português no dia-a-dia. Essas eram as línguas
das fábricas. Era por aí que as identificações e as solidariedades eram estabelecidas.
Messianismo
Os poucos grupos operários que foram
procurar o general Isidoro no quartel da Luz para aderirem à revolução nem sequer foram por ele recebidos, embora o general recebesse facilmente os representantes da
Associação Comercial. No entanto, nos bairros operários,
nos primeiros dias da revolução, trabalhadores esperançosos gritavam da janela de suas casas para seus vizinhos,
naqueles tempos em que o principal rádio era o berro:
"Isidoro é arrivato!", como ouvi de um velho morador da
Vila Alpina que me narrava a história. Inútil esperança
messiânica que se materializaria somente com Getúlio,
seis anos depois. Numa rua do Brás ainda existe, em alto
relevo na fachada de um bar, o simbólico nome do estabelecimento: "Padaria Estado Novo".
Na estrutura de classes da sociedade brasileira de então,
a opção dos revolucionários era clara. Não se tratava de
nenhuma "revolução russa" nem havia sovietes para exigir ou impor coisa nenhuma. A classe operária mal entendeu o que estava acontecendo. Apenas sofreu as cruentas
conseqüências de uma revolução que não era a sua. Tampouco os militares sabiam exatamente o que queriam. Sabiam apenas, como também a elite dirigente, que não queriam a bolchevização da revolução.
Só depois de vários dias conseguiram produzir um tosco
documento em que anunciavam o objetivo de sua luta: renúncia do presidente Artur Bernardes, sua substituição
por um governo provisório, convocação de uma Constituinte, redução do número de Estados, voto secreto, separação de Estado e Igreja (o que já estava na Constituição
republicana), mas reconhecimento dos católicos como
maioria, princípios que indicavam a objeção militar ao federalismo, o que se consumará depois no Estado Novo, de
1937. Não havia nada que dissesse respeito à condição
operária, a algumas reivindicações básicas, como o salário
e a jornada de trabalho, os chamados direitos sociais.
Diante do morticínio, da fome, do grande número de feridos, dos mortos insepultos ou sepultados às pressas,
uma proposta de armistício foi levada por Paulo Duarte,
no dia 27, ao general Eduardo Sócrates em Guaiaúna, comandante-em-chefe das forças federais, com quem se encontrava o governador Carlos de Campos. Foi recusada,
com desdém. Só aceitavam uma rendição incondicional.
No dia 28 de julho a cidade amanheceu finalmente desocupada pelas forças rebeldes. Isidoro e os oficiais que o
acompanhavam entenderam que a cidade seria destruída
se não o fizessem. Os revolucionários deslocaram-se com
tropas e equipamentos, por ferrovia, para o interior e para
o sul. Encontrariam os rebeldes gaúchos, de que resultaria
a Coluna Prestes.
São Paulo estava arruinada. Mais de 300 trincheiras haviam sido abertas nas ruas da cidade, mediante descalçamento e amontoamento de macadames. Um grande número de fábricas havia sido incendiado nos bombardeios.
Casas haviam sido destruídas nos bairros pobres. Famílias
estavam dispersas e separadas. Era necessário reuni-las
novamente, abrigá-las, retomar o trabalho.
Em poucos dias a repressão injusta se abateria sobre a cidade. Seus moradores foram considerados suspeitos de
colaboração com o inimigo. Afinal, inimigo de quem? De
operários ao presidente da Associação Comercial, um
sem-número de pessoas foi submetido ao inquérito policial militar. No silêncio de uma prateleira, os 170 volumes
do inquérito guardam as vozes do passado, os depoimentos e documentos capturados com os presos ou nas casas
que ocupavam, incluindo manuscritos e notas dos próprios oficiais revoltosos. Documentação que quase se perdeu quando o arquivo do Tribunal de Justiça na Vila Leopoldina foi invadido pelas águas podres do rio Pinheiros,
numa de suas inundações.
Todos os volumes ficaram submersos. Dentre eles, um
grosso volume de fotografias invocadas como provas: ficaram coladas uma nas outras. Esperam o milagre de uma
tecnologia que permita separá-las e recuperá-las. Veremos, então, uma São Paulo diversa de todas as que conhecemos, destruída, as faces do pesadelo e do terror, a expressão do pouco-caso pela vida e pela pessoa.
Um pastor presbiteriano, Paulo Lício Rizzo, escreveria
no início dos anos 40 um dos raros romances operários de
São Paulo, "Pedro Maneta", e provavelmente o único a
resgatar numa obra de ficção o drama de um mutilado do
Brás e da Mooca da revolução. Nesta cidade sem memória
ficou apenas um monumento para nos lembrar daqueles
dias de sofrimento, dor e morte, construído involuntariamente por um balaço: uma marca de bala na chaminé que
resta do que foi uma usina elétrica, perto da estação da
Luz, ao lado do quartel da Rota. É o único e desconhecido
monumento dessa tragédia, o monumento da nossa desmemória.
José de Souza Martins é professor titular de sociologia (aposentado) da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Sobre a Revolução de 1924, publicou um capítulo em "Subúrbio" (editora Hucitec).
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