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Peter Burke
ESTUDOS LANÇADOS RECENTEMENTE NA ITÁLIA E INGLATERRA MOSTRAM COMO A ÉPOCA ATUAL
TEM SEMELHANÇAS COM O FINAL DO SÉCULO 19
Origens distantes da globalização
Foi em 1902, por exemplo, que o jornalista inglês W.T. Stead publicou um artigo com o título "A Americanização do Mundo ou a Tendência do Século 20"
N
os atuais debates sobre a globalização, assim como nas discussões sobre a pós-modernidade,
destaca-se o pressuposto central
e majoritariamente aceito de que vivemos
uma época singular, a era "par excellence"
da aceleração das mudanças culturais e sociais, da compressão tempo-espaço subseqüente à revolução das comunicações, de
uma economia global dominada por corporações multinacionais, da americanização ou até "mcdonaldização" do mundo e
assim por diante. Em certos aspectos nossa
época é realmente ímpar, mas o mesmo
pode ser dito de outras gerações e outros
séculos. Não somos nem de longe os primeiros a nos afligir ou nos excitar com a
idéia de que nossas experiências são completamente diversas das vivenciadas por
gerações anteriores.
De fato, se definimos a globalização como um processo marcado por contatos cada vez mais intensos -sejam eles econômicos, políticos ou culturais- entre diferentes partes do mundo, então é forçoso
admitir que isso está em andamento há
milhares de anos -com interrupções relativamente menores em alguns lugares, como no baixo Império Romano. O aumento significativo da importância desse processo no século 19 -sobretudo em suas
últimas décadas- é o tema de dois estudos históricos recentes, um deles escrito
por um italiano, Carlo Fumian, e, o outro,
por um inglês, Christopher Bayly.
O livro de Fumian, "Verso una Società
Planetaria" [Em Direção a uma Sociedade
Planetária, ed. Donzelli, 11 euros], publicado em 2003, é um ensaio curto, menos de
130 páginas, num formato que cabe no
bolso do paletó. O autor é professor de história e jornalismo, e sua área de pesquisa é
a história econômica. O livro principia
com a observação de que o conceito de globalização surgiu nos anos de 1980, em trabalhos de economistas como Theodore
Levitt, antes de ser subitamente alçado à
condição de proeminência nos jornais e
nas conversas do dia-a-dia. Contudo Fumian situa as origens do processo de globalização no período de 1870-1914 e chama
a atenção para o fato de que já nessa época
algumas pessoas tinham plena consciência
das transformações em curso.
A passagem do século 19 para o século 20
tornou mais presente a sensação de que
uma nova era estava para começar. Foi em
1902, por exemplo, que o jornalista inglês
W.T. Stead publicou um artigo com o título "A Americanização do Mundo ou a
Tendência do Século 20". De sua parte, o
historiador italiano enfatiza dois tipos de
globalização. O primeiro é econômico, a
ascensão de um mercado mundial e as
conseqüências desse fenômeno na vida de
milhões de pessoas.
Para citar apenas um exemplo: grande
parte da Europa sofreu uma crise agrícola
na década de 1870. Os grãos exportados
pela Europa não tinham como competir
com os baixos preços do milho cultivado
nas pradarias dos EUA e do Canadá. Essa
crise foi um dos principais fatores responsáveis pela grande onda de emigração européia ocorrida em fins do século 19. Os
italianos, por exemplo, partiram aos milhões rumo aos EUA, Austrália, Argentina
e, é claro, Brasil, criando assim uma rede
de relações intercontinentais.
O segundo processo que interessa a Fumian é o surgimento dos esforços de cooperação internacional. Ele se debruça, entre outros, sobre os casos da Cruz Vermelha, da União Postal Universal e da conferência internacional sobre a padronização
horária, realizada em Washington, em
1884. A maioria dos países participantes
dessa conferência votou pela adoção de
Greenwich como o meridiano a ser utilizado no cálculo da hora padrão mundial
(embora os franceses, que contavam conferir essa honra a Paris, tenham se abstido
de votar, o mesmo acontecendo com os
brasileiros).
O período de 1870-1914 também assistiu
a várias tentativas de elaboração de línguas
universais, como o volapük e o esperanto.
Foi uma época em que os esportes começaram a ser organizados em escala mundial, com o reavivamento dos Jogos Olímpicos. Congressos internacionais, feiras
mundiais e exposições internacionais, como a Exposição Universal de Paris, realizada em 1889, se tornaram cada vez mais freqüentes, oferecendo ao público ocidental a
oportunidade de ouvir música japonesa
ou ver uma réplica de uma rua do Cairo,
viajando sem sair de casa.
Em 2004, Christopher Bayly publicou
um livro muito diferente do de Carlo Fumian. Maior, mais abrangente e árido,
"The Birth of the Modern World" [O Nascimento do Mundo Moderno, ed. Blackwell, US$ 34,95] soma mais de 500 páginas,
entre texto, notas e bibliografia. Mais do
que um ensaio dirigido ao público em geral, lembra um livro-texto a ser adotado
em cursos universitários sobre história
mundial. O autor conhece a fundo a história da Ásia, discorrendo com proficiência
sobre temas que vão do Oriente Médio ao
Japão, e mostra ser bem versado na história da Europa, da América do Norte e da
África (embora seus conhecimentos não
sejam tão amplos no que diz respeito à
América espanhola e ao Brasil).
No entanto, ao contrário de muitos autores de livros-textos, Bayly não se contenta
em sintetizar as conclusões dos especialistas. É ambicioso e original o bastante para
apresentar conclusões próprias, não apenas em seu campo de pesquisa -o Império Britânico e a Índia- como também no
tocante a tendências gerais da história
mundial. Uma de suas principais conclusões refere-se à importância do que ele denomina "globalização arcaica", a crescente
uniformidade entre os sistemas econômicos, sociais, políticos e culturais dominantes em diferentes partes do planeta num
século 19 longo, que vai de 1780 a 1914.
Logo no início do livro, Bayly discute o
que ele chama de "crise" do período 1780-1820, em especial o impacto que a Revolução Francesa e o império napoleônico tiveram, não somente na Europa, mas também no Egito, no Caribe e na América espanhola, visto que, ao invadir a Espanha,
Napoleão ofereceu às colônias espanholas
a oportunidade de se rebelarem. Ao chegar
a meados do século 19, Bayly compara as
revoluções européias de 1848 com os movimentos de 1857 na China (a revolta Taiping) e na Índia (o chamado "Motim"),
que foram ambos reações à expansão do
colonialismo ocidental.
Na última parte de seu estudo, Bayly enfatiza a importância da fase final do século
19 ou, mais precisamente, o período de
1890-1914, quando tem lugar o que ele denomina "a grande aceleração" das transformações. No campo das comunicações,
Marconi faz, em 1902, a primeira transmissão radiotelegráfica transatlântica, e, em
1909, Blériot faz o primeiro vôo transoceânico, cruzando o canal da Mancha num
monoplano. No campo das idéias, observa-se a disseminação mundial do positivismo,
que chega não apenas ao Brasil e à América
espanhola, mas também à Índia, onde hindus devotos fazem, às margens do rio Ganges, leituras em voz alta das obras de Comte, como se fossem livros sagrados.
Todavia Bayly não identifica a globalização à ocidentalização. Ao contrário, ele salienta as origens policêntricas das transformações. Na mesma época em que, por
exemplo, artistas indianos imitavam modelos europeus, a arte ocidental era invadida por imagens do Japão e da África.
Cada um desses dois historiadores escreveu seu livro sem saber do trabalho do outro. O primeiro é italiano, o segundo, britânico. Um se interessa mais pelas tendências
econômicas, o outro, pela história do imperialismo. A convergência entre suas conclusões gerais indica não apenas que a profissão historiográfica está se tornando ela
própria globalizada como também sugere
que a proximidade entre a nossa época e o
período de 1870-1914, quando nossos avós
ou bisavós eram jovens, é bem maior do
que a maioria de nós gostaria de acreditar.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor) e
"O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Alexandre Hubner.
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