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O músico fala de suas composições para o espetáculo do grupo Corpo, que estréia na quinta em SP, discute a relação entre o popular e o erudito e critica a violência na arte hoje
Santo Agostinho contra a estética do mal
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
A mais nova causa de Tom Zé, 65, é recusar qualquer participação na violência que viceja na cultura contemporânea. O músico se irrita com a distorção segundo a qual quem concentra em sua obra mais crueldade tem supostamente mais prerrogativas estéticas e conta que vinha descobrindo em si alguns sintomas dessa ilusão -a de que a violência pode substituir a estética. Contra esse movimento ele compôs "Santagustin", música para o espetáculo homônimo do grupo Corpo, baseado na dualidade de santo Agostinho, que estréia para o público na próxima
quinta no teatro Alfa (tel. 0/xx/11/5693-4000), em SP.
Nas palavras de Tom Zé, em texto de apresentação da
música para o programa: "No século 5º o santo da igreja
também se deparou com funções tonais conflitantes e
harmonias paradoxais quando, munido do gnosticismo neoplatônico, sofria para harmonizar o prazer sexual e o amor carnal no corpo sagrado de
uma religião cristã que, naquele tempo,
ensaiava a tessitura de seus dogmas".
O outro alimento para a composição
de "Santagustin" foi a música instrumental brasileira, seguindo a estética do
arrastão -de nomear as referências e citações- proposta por Tom Zé no CD
"Com Defeito de Fabricação" (1998).
Tem arrastão de Hermeto Pascoal, de
Yamandú Costa, Nelson Ayres, Banda
Mantiqueira e outros, como revelam os títulos das peças: "Hermetório", "Yamanduzório", "Joãogilbertório". Nessa última, por exemplo, Tom Zé trata a voz como instrumento.
Por que "Santagustin" representa uma mudança de percurso no seu jeito de trabalhar?
"Santagustin" é o primeiro trabalho em que eu tento
corrigir um aspecto insatisfatório da minha atividade, tento fazer uma arte que não admite violência como prerrogativa estética, procuro corrigir o procedimento de buscar audiência a todo o custo.
Acho que nós, artistas, não podemos colaborar para
jogar a sociedade nesse buraco sem fundo. "Santagustin" não se define nem pelo nome nem pelo santo
nem pelo fato de tratar do amor, mas pela procura de
um interesse estético que seja rigorosamente humano. É claro que estão presentes a sátira, o amor, o riso, a brasilidade musical, mas não estou sorrindo da
sociedade nem das regras morais, porque estou muito interessado na sociedade e nos valores morais.
O que você está rechaçando mais exatamente é essa estética da violência do cinema e da TV?
Se fôssemos procurar a origem dessa violência que
hoje quase açambarca e domina a arte ou tentar localizar na arte contemporânea mais próxima alguns
exemplos, a gente poderia evocar o caminho percorrido pelo Child Roland, de Robert Browning ("O Caminho de Child Roland na Direção da Torre Sombria"), ou Shelley, em "O Triunfo da Vida", que, sob
o pretexto de falar sobre um dia do viver cotidiano,
desembesta uma terrível descrição do comportamento humano, uma coisa infernal, uma coisa dantesca; ou poderíamos até arrolar Meyerhold ou Ionesco ou Beckett ou Artaud e, de certo modo, até
Brecht. Mas em todas essas manifestações os autores
estavam descobrindo uma violência já embutida e
latente nas relações humanas, o substrato era sempre artístico. A arte de hoje, não, principalmente a
arte cinematográfica, a arte televisiva, com sua submissão à violência, parece ter subjacente o ideal sado-fascista de conduzir a sociedade ao extermínio.
Parece que a arte só pode ser feita desse modo, e
quando a gente fala que não é possível que seja assim, os críticos dizem que a gente está sendo censor.
Bem, eu acho que, de algum modo,
censurados são aqueles que não podem fazer o seu tipo de arte: será que a
ternura, a doçura também não podem fazer parte da arte? A esperança
política, a utopia não podem fazer
parte da arte? É o caso de perguntar:
Webern, Schoenberg, Stravinski, Luiz
Tatit precisaram de violência para fazer manifestações artísticas modernas tão comoventes como fizeram?
Ou Cummings, a poesia concreta, Hölderlin, Oswald
ou Drummond precisaram de violência para fazer a
poesia de vanguarda que fizeram?
Alguém pode argumentar que lá em Stravinski tem
violência; tá certo, mas é a violência do sacrifício mítico e até da primavera brotando, rasgando, com sua
violência para nascer: é a diferença entre a violência
do parto e a violência do assassinato nonsense. O
problema é o mal banalizado, ou essa espécie de
olimpíada da crueldade, como se o mais cruel tivesse
mais prerrogativas estéticas. Ao contrário, nem Shelley nem Browning nem Keats nem Meyerhold nem
Brecht nem Artaud praticaram essa estética do mal
banalizado, tudo tinha finalidade.
Em texto para o programa do espetáculo você afirma
que, "por meio de um erro controlado nas funções tonais,
provocamos uma fermentação que, a depender do grau,
fica entre a raiva e a vacina". De que se trata esse erro?
Principalmente nas peças cinco e sete -são sete peças ao todo no balé, de 40 minutos- eu pratico o seguinte erro: por natureza física, as funções tonais da
harmonia tradicional têm campos bastante distintos
que se chamam tônica subdominante e dominante.
Às vezes, já pelo procedimento vegetativo, nós todos
respeitamos isso. Nessas peças cinco e sete eu de vez
em quando permito que um campo de subdominante seja invadido pelo de dominante, e isso cria uma estranheza, um mal-estar inicial, que entretanto não chega a ser politonalidade, um assunto conhecido da música erudita: são dosagens fracas de
estranhamento, que vão se resolvendo na maneira
como a música popular trata a tonalidade.
A utilização de tonalidades conflitantes já não é uma
constante em seu trabalho? Ou veio em resposta à desarmonia entre tipos de amor do tema do espetáculo?
Nenhuma das duas coisas. Nas peças anteriores eu
fiz outros tipos de brincadeira, como um acorde só
desafiando o esquema da harmonia ou então harmonias meio estranhas, mas essa do estranhamento
e de deixar aparecer uma coisa da tônica na região da
dominante, isso surgiu agora. E nós mesmos, eu, o
Gilberto Assis, que é meu parceiro nessa composição, o Paulo Lepetit, que é o destrancador da máquina, e a Cristina Carneiro, que fez a supervisão musical, nos perguntamos: "Será isso aceitável?". A gente
teve dúvida sobre se esse produto seria deglutível,
porque, se fosse música erudita, a gente podia mandar ver, mas música popular é mais exigente quanto a uma lógica compreensível.
Mas existem bandas de pop-rock, como o Tortoise, com
quem você fez turnê, e o Mogwai, cujo refinamento as
aproxima do universo da música erudita, você não acha?
Mas não é o caso do que estou fazendo no "Santagustin", que tem toda a fisionomia e a compleição de
música popular brasileira: é inspirada em Pixinguinha e na família Carrasqueira. O que faço tem sempre um pouco de estranho à música popular e tem de
estranho até ao rock, porque esse sendero autodidata a que eu me atiço às vezes me faz deparar com coisas que podem ser estranhas até à música erudita.
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