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A LIÇÃO DE CASA DA DITADURA
"NOTURNO DO CHILE" ENCONTRA NO TERROR SUA ESSÊNCIA METAFÍSICA E PROVA QUE A FICÇÃO PODE SER, AO MESMO TEMPO, UM BRINQUEDO LITERÁRIO E UMA APOSTA NA SERIEDADE
Christopher Domínguez Michael
do "Letras Libres"
Entre os milhares de páginas, indignadas ou comovidas, escritas sobre as ditaduras militares que reinaram no Cone Sul nas últimas décadas, poucas me
pareceram tão eficazes como as que Roberto Bolaño dedica, no fantasmagórico "Noturno do Chile" [Companhia das Letras, trad. Eduardo Brandão, 120 págs., R$
27], a um inverossímil general Pinochet tendo aulas de
marxismo com o sacerdote e crítico literário Sebastián Urrutia Lacroix, vulgo padre Ibacache. Só um prosador com
o refinamento intelectual de Bolaño poderia retratar o terror por meio de uma anedota espectral, sem recorrer a
convenções surradas, pondo uma junta militar ansiosa
por conhecer a ideologia do inimigo marxista diante de
um poeta improvisado, de relativo sucesso.
Para chegar a isso, Bolaño constrói, em apenas 120 páginas, uma obra-prima da novela, cuja progressão asfixiante
cobre o enigma da vocação artística, a maldição da crítica
literária, as estranhezas do Estado eclesiástico e a real ou
suposta banalidade do mal. São, no mínimo, quatro problemas expostos em uma narração que não dá descanso
ao leitor. Seguindo o recurso de Hermann Broch em "A
Morte de Virgílio", Bolaño desfia a memória em fuga de
um moribundo ou de um febrento delirante que se sente
morrer, disposto a narrar alguns momentos-chave de
uma vida um tanto supérflua.
"Noturno do Chile" nos lembra que a realidade novelesca só toca o sentido poético do mundo quando cria, ao
mesmo tempo, personagens e atmosferas. Sebastián Urrutia Lacroix deve iniciar sua educação sentimental passando pelo crivo do crítico Farewell, príncipe da literatura
chilena. Com singular liberdade, Bolaño parece apresentar uma versão ficcional de Hernán Díaz Arrieta (1891-1984), conhecido durante meio século por seu pseudônimo, Alone. Resenhista compulsivo, Alone deixou uma
obra imensa, na qual se destaca "Pretérito Imperfecto",
"Memorias de un Crítico Literario" (1976) e "Historia Personal de la Literatura Chilena" (1954).
Herdeiro austral e tardio de Sainte-Beuve, Alone -Farewell em "Noturno do Chile"- praticou a velha crítica
mediante "um esforço civilizador, um esforço de tom comedido e conciliador, como um humilde farol na costa da
morte", como descreve Bolaño com ironia.
Alone foi um combativo jornalista de direita, o que não o
impediu de ser amigo e protetor de Pablo Neruda. O padre
Ibacache, em sua febre, dialoga com Farewell: "Eu queria
lhe dizer que até os poetas do Partido Comunista chileno
morriam de desejo de que o sr. escrevesse alguma coisa
amável sobre seus versos". E é justamente na presença de
Neruda, no sítio de Farewell, que o pobre padre, humilhado tanto por seu colarinho eclesiástico como por sua puberdade lírica, passa pelo rito de iniciação, tornando-se
parceiro ou acólito do grande crítico.
Desde "La Literatura Nazi en América" (1996), Bolaño
decidiu apostar alto e, brincando muito a sério, trabalhar
os fantasmas ideológicos do século 20. O Chile é um lugar
sinistramente apropriado para o exercício, seja pela brutal
repressão que se seguiu à derrocada de Allende [1973], seja
pela impressionante presença do nacional-socialismo no
país já antes de 1933, como Víctor Farías documenta à
exaustão em seu "Los Nazis en Chile" (2000).
Um jovem duplo
Mas, voltando a Farewell e ao padre
Ibacache, velhos pinochetistas que não entendem o significado político da morte de Neruda, ocorrida poucos dias
depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973. Esse é
outro dos pontos altos de "Noturno do Chile": "No dia seguinte fomos ao cemitério. Farewell estava muito elegante.
Parecia um navio-fantasma, mas muito elegante. Vão me
devolver o sítio, disse-me ao ouvido [...]. Então alguém começou a gritar. Um histérico. Outros histéricos ecoavam o
bordão. Que grosseria é essa?, perguntou Farewell. Pequenas recaídas, não se preocupe, já estamos chegando ao cemitério. E onde está Pablo?, pergunto Farewell. Ali adiante, no caixão. [...] Pena que não se façam mais enterros como antigamente, disse Farewell. É verdade, disse eu. Com
panegíricos e despedidas de todo tipo, disse Farewell. À
francesa, disse eu. Eu teria escrito um belo discurso para
Pablo, disse Farewell e começou a chorar. Devemos estar
sonhando, pensei. Ao deixarmos o cemitério, de braço dado, vi um sujeito dormindo recostado num túmulo. Um
arrepio me percorreu a espinha. Os dias que se seguiram
foram bem agradáveis. Eu estava cansado de ler tantos
gregos, então voltei a freqüentar a literatura chilena".
O padre Ibacache nunca será mais do que um "écrivain
raté", atormentado por um jovem duplo e perseguido pelas sentenças céticas de Farewell -"de que serve a vida,
para que servem os livros, são apenas sombras". E sua vida
clerical só desabrocha durante uma viagem eclesiástica
pela Europa, enviado pela Opus Dei, para acompanhar o
restauro de igrejas e basílicas. O padre literato de "Noturno do Chile" acaba conhecendo uma rede italiana, francesa e espanhola de clérigos colombófobos que transformam seus campanários em nichos de cetraria, pois só os
falcões podem acabar com as pombas, culpadas pela deterioração sistemática dos monumentos da Igreja Católica.
Depois do golpe militar, indiferente à função do crítico
como farol civilizador da costa da morte, o padre Ibacache
recebe a estranha proposta, que deve manter em absoluto
segredo, de instruir os generais golpistas na ideologia marxista. Nessas sessões, Pinochet se destaca como o mais paciente dos alunos e, no final, se confessa superior aos presidentes Alessandri, Frei e Allende, pois, à diferença destes,
ele escreveu livros, ainda que de geopolítica e publicados
por editoras militares.
"A décima aula", lemos em "Noturno do Chile", "foi a
última. Só assistiu o general Pinochet. Falamos de religião,
não de política. Ao me despedir, deu-me uma lembrança
em seu nome e no dos demais membros da junta. Não sei
por que eu pensei que a despedida seria mais emotiva. Não
foi. Foi uma despedida de certo modo fria, correta, condicionada pelos imperativos de um homem de Estado. Perguntei-lhe se as aulas haviam sido de alguma utilidade.
Claro, disse o general. Perguntei-lhe se eu estivera à altura
do que se esperava de mim. Vá com a consciência tranqüila, afirmou, seu trabalho foi perfeito. O coronel Pérez Larouche acompanhou-me até minha casa. Quando cheguei, às duas da manhã, depois de atravessar as ruas desertas de Santiago, a geometria do toque de recolher, não
consegui dormir nem soube o que fazer. Comecei a zanzar
pelo quarto enquanto uma maré crescente de imagens e
de vozes tomava meu cérebro. Dez aulas, dizia a mim mesmo. Na verdade, só nove. Nove aulas. Nove lições. Pouca
bibliografia. Fiz tudo direito? Eles aprenderam alguma
coisa? Eu ensinei alguma coisa? Fiz o que tinha de fazer?
Será que o marxismo é um humanismo? Será uma teoria
demoníaca? Se eu contasse o que fiz para meus amigos escritores, teria a aprovação deles? Alguns manifestariam
absoluto repúdio? Alguns compreenderiam e perdoariam? Um homem sabe, sempre, o que é certo e o que é errado?". No final, o padre Ibacache conta seu segredo ao
crítico Farewell. Pouco depois, o Chile inteiro sabe disso.
As trepidantes primeiras cem páginas de "Los Detectives
Salvajes" (1998), esse retrato da vida literária mexicana dos
anos 70, deu prova do enorme talento de Bolaño. Mas esse
romance, tão aclamado, padece de um defeito comum na
ficção latino-americana, certo bizantinismo que nos impede de interromper o fluxo narrativo sem perder o fio novelesco. Já em "Estrella Distante" (1996) e "Noturno do
Chile", Bolaño demonstra, sem dúvida alguma, que é um
dos dois ou três narradores latino-americanos mais talentosos de nossa época.
Poucos como ele tiraram tanto proveito da diáspora sul-americana dos anos 70, transformando as dores ideológicas em profecias literárias, encontrando no terror sua essência metafísica, provando que a prosa pode e deve ser,
ao mesmo tempo, um brinquedo literário e uma aposta na
seriedade. As obras de Bolaño apresentam um escritor
que pertence simultaneamente a várias literaturas, não
apenas, como já se disse, à mexicana e à chilena, mas à tradição narrativa universal, virtude da qual poucos escritores podem se vangloriar.
Em sua brevidade, "Noturno do Chile" apresenta um
personagem difícil de esquecer, esse padre Ibacache que
concentra atributos só encontráveis na mais alta elaboração artística: desde a personalidade da linguagem até o
horror da história, o pasmo da vocação crítica e o romance
como casa onde impera não a imitação servil da vida, e
sim a experiência da literatura.
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