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IDENTIDADES TÁTICAS
"O LUGAR DO BRASIL NA POLÍTICA
EXTERIOR ARGENTINA" DEFENDE QUE OS DOIS PAÍSES DEVEM TROCAR UM PARADIGMA DE RELAÇÃO ÍNDIA-PAQUISTÃO
POR UM DO TIPO FRANÇA-ALEMANHA
Eduardo Szklarz
free-lance para a Folha
A relação entre o Brasil e a Argentina
sempre navegou num mar de ambigüidades. O país representou para o vizinho ora uma ameaça, ora
um aliado, como afirmam os cientistas políticos Roberto Russell e Juan Gabriel Tokatlian no livro "El Lugar de Brasil en la
Politica Exterior Argentina" [O Lugar do
Brasil na Política Exterior Argentina, editora Fondo de Cultura Económica, 128
págs., 12 pesos]. Segundo eles, a democratização, a crescente interdependência econômica e a assimetria de poder criaram
condições para que as duas nações finalmente ancorem seus destinos numa cultura de amizade, tal como já existe na Europa
Ocidental.
"Esta é uma oportunidade única. Por décadas fomos rivais, competidores e opositores. Agora não temos mais esse ânimo",
diz Tokatlian, diretor de ciência política e
relações internacionais da Universidade
San Andrés. Para Russell, diretor do mestrado de estudos internacionais da Universidade Torcuato di Tella e professor do
Isen (Instituto Del Servicio Exterior de la
Nación), a Argentina compreende e aceita
o atual avanço do governo Lula rumo a
uma liderança regional. "Mas o Brasil também deve reconhecer o papel da Argentina
na construção de um projeto estratégico
na América do Sul", adverte. Eles conversaram com o Mais! no gabinete de Russell,
em Buenos Aires.
O ex-embaixador do Brasil na Argentina José Botafogo Gonçalves costuma dizer que
brasileiros e argentinos são íntimos desconhecidos. O que levou a isso?
Juan Gabriel Tokatlian - Fatores históricos, culturais e políticos fizeram com
que nossa história comum fosse mais
de divisão que de unidade. Nossa relação sempre foi complexa e, por décadas, marcada por um componente de
rivalidade. O fundamental é observar
como tem sido a passagem da estrutura
de rivalidade, que persistiu até os anos
1980, a uma estrutura marcada por reciprocidade e convivência política. Todos
esses elementos ajudaram a criar o que,
no livro, chamamos de cultura de amizade. É evidente que transitar a outro tipo de estrutura demanda tempo, atores
sociais, mudança de visões, determinação política e inclusive militar. Nesse
contexto, a democratização quase paralela nos dois países, facilitada pelo colapso da Guerra Fria e estimulada por
uma visão distinta da integração, deu
mais sentido à maior convergência.
Roberto Russell - Tratamos de identificar no livro os paradigmas que orientaram a política exterior argentina até a
crise de dezembro de 2001 e ver qual o
lugar ocupado pelo Brasil. No primeiro
paradigma, quando a Argentina tem
uma relação especial com a Grã-Bretanha e a Europa (1880 a 1930), há pouca
interação entre os dois países. Nenhum
olha para o outro. No segundo (globalista, pós-Segunda Guerra), já há um lugar
importante reservado para a região.
Mas a visão que a Argentina tem do Brasil está muito mesclada com elementos
de rivalidade. A geopolítica e a oposição
marcam muito mais a ação do que o discurso cooperador.
No último caso (governos Menem e
De la Rúa), é desenvolvida uma estratégia de "plegamiento" (vínculo) com os
Estados Unidos, o que dificulta o avanço
na relação com o Brasil para além do
plano econômico.
Tem havido interação desde sempre,
mas ela tem sido pouco densa e fundamentalmente interestatal. Falta mais relação no plano das sociedades civis. A
interdependência tem sido muito baixa.
Talvez por isso, a frase de Botafogo ainda faça muito sentido.
A relação continua dependente de ações
presidenciais?
Tokatlian - Vamos dividir a questão em
três partes. Quando Sarney e Alfonsín
decidem iniciar um novo trajeto na relação bilateral -e nesse momento a palavra Mercosul não existia- o fundamento da aproximação mútua era político-estratégico. Era a convicção de que
o Brasil e a Argentina deveriam buscar
maior convergência porque, isoladamente, sua margem de influência e seu
poder negociador internacional seriam
muito baixos.
Portanto, se há uma comparação entre Lula e Kirchner em seus respectivos
governos, é que agora os dois parecem
coincidir na dimensão político-estratégica entre Brasil e Argentina.
A segunda parte é o Mercosul, entendido como um acordo de integração econômica que se iniciou como união
aduaneira imperfeita e que deveria
avançar para processos de maior institucionalização. Mas há uma franca paralisia do Mercosul como projeto de integração e união aduaneira. Parece que
os limites do Mercosul terão impacto
sobre a vocação política das lideranças.
Se a relação Kirchner-Lula continuar
num bom caminho e se o Mercosul econômico estiver travado, então chegamos ao terceiro elemento: a única maneira de buscar um mecanismo de institucionalização da relação é voltar a
pensar qual é a estratégia do Brasil e da
Argentina frente ao mundo.
Russell - A relação entre a Argentina e o
Brasil é menos que o Mercosul, em um
sentido, mas é também muito mais. É
menos porque o Mercosul é um esquema de integração que inclui mais países
e, até aqui, tem um caráter essencialmente econômico. É mais porque uma
relação argentino-brasileira definida no
marco da cooperação é uma condição
necessária de nossa futura autonomia
no plano internacional, que pode mobilizar outros países da sub-região.
A Argentina tem de fato uma política exterior ou se vincula a países como Brasil, Estados Unidos e Inglaterra por motivos basicamente econômicos?
Russell - Dificilmente se concretizará
na Argentina uma política de "plegamiento" com o Brasil. Podemos entender um vínculo dessa natureza com um
ator como os EUA. Com o Brasil, trata-se de outra coisa: um projeto estratégico com o qual alcançaremos juntos coisas que não conseguiríamos sozinhos.
Não é que agora a Argentina vai fazer
"seguirismo" (seguir o outro) com Brasília só porque o vínculo com os EUA
não deu os resultados esperados. Se faz
apenas seguirismo, então por que não
tentar de novo com um ator mais poderoso? Não é essa a discussão. Os que dizem que a Argentina faria agora "seguirismo" com o Brasil são os mesmos que
fizeram "seguirismo" com os EUA. Não
querem a aliança estratégica que defendemos.
Mas há aceitação para a proposta de aliança
estratégica?
Russell - Muito mais que nos anos 1990.
A Argentina não está aí para seguir o
Brasil. Isso não está em sua identidade,
em sua natureza. Creio que tampouco
convém ao Brasil esse tipo de relação,
baseada em meros interesses de conjuntura em que o Brasil seria um "second best". Trata-se de defender posições maduras dos dois países, que busquem identificar interesses comuns e
atuar em conseqüência disso.
Tokatlian - Não convém colocar a relação entre Argentina e Brasil no velho
prisma da "realpolitik". Se queremos
compartilhar elementos de identidade,
devemos cortar a visão ortodoxa, clássica, de que o que existe com o Brasil é
uma substituição de alianças: tivemos
uma aliança com a Grã-Bretanha, depois com os EUA e agora teríamos que
nos conformar com uma aliança com o
Brasil. Essa visão alimenta os setores
mais tendentes à tensão. A relação argentino-brasileira não deve se transformar numa do tipo Paquistão-Índia.
Por sorte, estamos longe disso. E tomara que seja mais uma relação França-Alemanha, que, mesmo com poderes diferenciados, tem sido fundamental para concretizar a União Européia.
Hoje não estamos perto da relação
França-Alemanha, mas pelo menos
abandonamos a Índia-Paquistão.
Como observam o atual movimento do governo Lula em direção a uma liderança regional?
Russell - Esse movimento está sendo
não apenas compreendido, mas também aceito por muita gente aqui na Argentina, inclusive no próprio Ministério das Relações Exteriores. Espera-se
que o Brasil atue como um país que
quer ter uma posição de líder, e não impor seus interesses e desejos. Mas essa é
uma pergunta que deveria ser feita aos
brasileiros. Como o Brasil está vendo a
relação com a Argentina e os outros
países da região? A ênfase posta por Lula na região poderia ser vista como uma
expressão do propósito brasileiro de estender pouco a pouco sua influência e
seu domínio sobre ela. Entretanto essa
não é a visão que hoje prevalece nas esferas oficiais argentinas nem no palácio
San Martín.
A preocupação é como construir uma
sociedade estratégica que sirva aos dois
países. Também se espera que o Brasil
assuma uma liderança na região sem
nenhuma pretensão hegemônica. Ao
mesmo tempo, o Brasil tem que dar
mostras de restrição de poder e contemplar os interesses da Argentina, que
nem sempre haverão de coincidir com
os seus.
Tokatlian - Um país da relevância do
Brasil é um jogador-chave no plano regional e também ambiciona ter um papel global. Neste último, ele pode buscar fontes maiores, como China, Índia,
África do Sul, mundo árabe e países influentes da África, de forma a ser um
"global player". Para a Argentina, que
vem de uma situação de decadência
muito forte, esse papel é impossível. A
Argentina não pode ser um "global player". Nesse campo, não existe competição com a aspiração do Brasil. No âmbito sul-americano, entretanto, mostrar
que o Brasil tem uma capacidade de liderança importante é entender que deve haver uma co-responsabilidade com
a Argentina.
De que forma essa co-responsabilidade se
refletiria?
Tokatlian - Em vários campos. Um
bom exemplo foi a resolução conjunta
da crise na Bolívia.
O Brasil também convidou a Argentina a ser membro do Grupo de Amigos
da Venezuela, que teve um papel importante para chegar ao referendo naquele país. Infelizmente, a Argentina
não soube aproveitar a chance.
Um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU seria um limite a essa co-responsabilidade, já que ambos países aspiram a ele?
Tokatlian - Não haverá problema se
nunca existir coincidência nesse ponto.
Não é algo dramático. É dramático que
Itália e Alemanha tenham posições diferentes sobre o tema? Há atores na
União Européia que defendem apenas
um veto para ela. Inglaterra e França
não vão ceder nisso nunca. Mas isso impede que a UE funcione? Não. Primeiro,
é preciso desdramatizar esse tema. Depois, ser realista e ver que, se houver reformas em breve no marco da ONU,
elas não serão em prol de países da periferia ou de atores regionais influentes.
Os EUA ainda controlam uma espécie
de "superveto" no sistema internacional. Proclamar que estamos às vésperas
de uma reforma é desgastar esforços diplomáticos. Quando chegar o momento, a Argentina terá uma posição: assento rotativo. O Brasil terá outra posição:
ser representante para toda a América
Latina. O ponto é: vamos ter a maturidade para debater o tema?
Já existe uma identidade latino-americana
nos dois países?
Russell - O Brasil talvez não tenha uma
identidade sul-americana nem sequer
latino-americana, e sim um projeto político-estratégico na América do Sul. Se
é um projeto hegemônico ou de outro
tipo, ainda veremos.
O Brasil sempre se sentiu diferente
dessa América Latina, que além de tudo
é de fala hispânica. Já a identidade da
Argentina está em debate, e seu projeto
estratégico de inserção internacional
ainda carece de consenso interno. A Argentina também nunca se sentiu muito
latino-americana, mas por motivos distintos. Nossa identidade latino-americana foi se construindo fundamentalmente como conseqüência de nosso declínio. Uma espécie de fatalidade que
muitos argentinos ainda resistem em
aceitar.
Como o caso das Malvinas.
Russel - Tudo o que a Argentina passou
desde as Malvinas, para não ir mais longe, tende a construir essa identidade latino-americana. As condições atuais da
Argentina e do mundo vão fazer com
que o país se incline cada vez mais a um
projeto de política exterior que enfatize
a América do Sul. Esse é o espaço natural para firmar as bases de uma política
exterior mais independente. Muitos
dos que hoje levantam as bandeiras de
um projeto mais "latino-americano" temem que a limitação ao sul-americano
gere uma nova forma de dependência,
desta vez do Brasil.
Tokatlian - A construção da identidade
tem componentes constantes, como lugar geográfico, dimensão, demografia e
variáveis, que são os que estão em jogo.
Cada vez mais, a Argentina tem pares
no Cone Sul que compartilham princípios, como democracia, direitos humanos e estabilidade institucional.
O país também vem recebendo imigrantes chilenos, uruguaios, paraguaios, bolivianos e peruanos, que têm
vínculos profundos com as sociedades
de origem.
Esses fatores nos trazem a necessidade de ter não apenas uma identidade,
mas uma identidade múltipla. Há uma
Argentina que ainda pulsa por ser uma
espécie de arquipélago da Europa, sonha com relações especiais com os EUA
e tem um universo sociocultural quase
pós-moderno. Mas há uma outra Argentina que necessita e se nutre da região. No momento, não há uma definição sobre qual grupo ou ator social hegemoniza um projeto internacional. Esse processo está aí, em pleno processo
de contradições e mutações.
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