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"O SANTO REICH", DE RICHARD STEIGMANN-GALL,
INVESTIGA COMO OS NAZISTAS INCORPORARAM CONCEPÇÕES
CRISTÃS EM SUAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DURANTE OS ANOS 20 E 30,
EM DETRIMENTO DE VALORES PAGÃOS E BÁRBAROS
A CRUZ TORTA
Reprodução
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"Normalização ", fotomontagem de John Heartfield |
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
É preciso ter muito estômago para
enfrentar as trezentas e tantas páginas deste livro. Analisando as relações entre nazismo e cristianismo, o
historiador Richard Steigmann-Gall, da
Universidade Estadual de Kent (EUA),
embrenhou-se no mais repulsivo labirinto
da extrema direita religiosa alemã no período da República de Weimar [1918-33];
avançou pelas opiniões privadas de Hitler,
Goering e Goebbels acerca dos Evangelhos
e discute qual o peso dos adeptos de um
"paganismo teutônico" -Himmler e Bormann, por exemplo- no quadro mais
amplo da militância nazista. Perto das opiniões que se registram em "O Santo
Reich", o próprio Hitler parece um moderado, um sensato, um iluminista.
Tomem-se, por exemplo, as teses de um
certo Partido Libertador do Povo Alemão,
o DVFP, que por volta de 1930 acusava Hitler de traição: era um líder tolerante demais com o catolicismo, tentava aliar-se a
Mussolini, que por sua vez não combatia o
papa, que estava naturalmente aliado aos
jesuítas, que na verdade dependiam do
sustento de um financista, o "judeu Olivetti". Havia também quem considerasse que
a "grande conspiração judaica" para dominar o mundo era apenas a fachada de
outra conspiração, mais secreta, dominada pelo Dalai Lama.
O que justifica a incursão do autor nesse
mundo confuso e nauseabundo, habitado
por figuras insignificantes dentro da própria organização nazista? O objetivo de
Steigmann-Gall é provar que, ao contrário
do que se acredita em geral, os princípios
"pagãos" e anticristãos tiveram pouco peso no nazismo. Embora figuras importantes como Himmler e Heydrich sustentassem, dentro dos quadros da SS, convicções
avessas ao cristianismo e nostálgicas de
um passado teutônico bárbaro, essas
idéias não eram levadas muito a sério pelos
demais líderes do partido.
Hitler ironiza as preocupações arqueológicas do comandante da SS: "Já não basta
os romanos estarem construindo grandes
prédios quando nossos antepassados ainda moravam em cabanas de barro; agora
Himmler está começando a desenterrar
essas aldeias de cabanas de barro e a se entusiasmar com cada caco de louça e machado de pedra que encontra". Himmler
também reclamava da ação nefasta dos
"papas judeus".
O Führer, um "civilizado"
Longe dessas especulações, o Führer se considerava
(a sério ou não, difícil saber) um "civilizado". Preconizava que, no tocante à religião, o nazismo ficasse restrito a um "cristianismo positivo", ou seja, um cristianismo que não entrasse nas divergências teológicas entre protestantes e católicos, zelando pela separação entre igreja e Estado
e priorizando os pontos capazes de unificar o espírito da nação alemã. Essa, afinal,
seria a linha predominante do partido, a
despeito das variações individuais de opinião.
Hitler e os nazistas, seguidores de Cristo?
Sim, pois Cristo era "o primeiro anti-semita". Expulsando os vendilhões do templo,
ele mostrava sua discordância diante do
"materialismo judaico". Mas Jesus não era
judeu? Claro que não, gritam todos em
uníssono, a partir das teorias do racista
Houston Chamberlain, genro de Richard
Wagner. O cristianismo nazista era assim
sintetizado por Goebbels: "Cristo: o princípio do amor. Marx: o princípio do ódio". O
principal propagandista nazi continua:
"Cristo não pode ter sido judeu. Não preciso provar o que estou dizendo por meio da
ciência ou da erudição. Este é um fato indiscutível!". Jesus era apresentado como
uma espécie de herói alemão, "loiro e esbelto". Inconcebível que tivesse "pés chatos e nariz aquilino", berra outro teórico.
No nazismo a estupidez não tem limites,
e a sensatez parece ainda pior. Richard
Steigmann-Gall não parece saber nunca o
ponto onde interromper sua demonstração. Os absurdos e os fatos se acumulam
de maneira tediosa. O autor sente uma
atração irreprimível pelas figuras menores
do partido; pelas pequenas intrigas e calúnias trocadas entre fanáticos e bajuladores
dentro da hierarquia. Não seria necessário,
por exemplo, citar as opiniões ultracristãs
de Gottfried Krummacher, único líder do
sexo masculino (por seis meses) da Organização Nacional-Socialista das Mulheres,
que era por sua vez ironizado por Josef
Grohé, "gauleiter" da cidade natal de
Krummacher, pelo excesso de santimônia.
Com o passar do tempo, as relações entre
as igrejas e o poder nazista se deterioram;
mais em função da rígida separação entre
igreja e Estado defendida pelos nazistas,
argumenta Steigmann-Gall, do que por incompatibilidades confessionais.
Certo, um católico fervoroso como Josef
Wagner, responsável pela administração
da Westfália e da Silésia durante os anos
30, terminou sendo expulso do partido:
observe-se que seus filhos estudavam em
colégios de freiras e sua mulher havia se
ajoelhado diante do papa numa recepção
no Vaticano. Contudo mesmo o mais anticlerical dos nazistas, Martin Bormann,
quando teve plenos poderes na Polônia
para administrar a política religiosa do
partido, não extinguiu as igrejas -mantendo-as, é claro, sob controle de ferro, expropriando seus bens e combatendo os
mosteiros, "porque trabalhavam contra a
moralidade alemã".
Boa-fé e oportunismo
As conseqüências dessa investigação exaustiva não
são fáceis de dimensionar. Os nazistas tinham poder para definir e redefinir o que
bem quisessem; seu "cristianismo" corresponde a muito pouco do que se possa cotidianamente entender pelo termo. É certo
que, nessas condições, cristianismo e nazismo não eram incompatíveis: nem para padres nem para católicos nem para protestantes nem para alemães comuns nem para
líderes hitleristas. Seria surpreendente se
houvesse incompatibilidade total, a despeito dos também importantes focos de objeção católica ao nazismo.
O principal problema é que, no caso de
inúmeros textos e pronunciamentos nazistas, talvez seja tarefa inútil distinguir entre
o que é pura propaganda e convicção sincera, entre oportunismo e boa-fé. Diferenças desse tipo, numa sociedade totalitária e
enlouquecida, tendem a não fazer muito
sentido.
O estudo de Steigmann-Gall destaca, paradoxalmente, o relativo espaço de liberdade a respeito desses assuntos no interior
dos quadros hitleristas. Mais do que pôr o
cristianismo sob suspeita de anti-semitismo (o que seria de todo modo uma banalidade), o livro tem o efeito terrível de atribuir ao nazismo uma certa liberalidade e
tolerância religiosa. Claro que essa está longe de ser a intenção de Steigmann-Gall,
empenhado sobretudo em mostrar de que
turvo caldo de cultura cristã teria surgido a
intolerância nazista. Mas este leitor, sufocado pela massa de informações acerca dos
mais delirantes debates e dos mais infames
matizes de opinião dentro do partido, diria
que Steigmann-Gall chegou excessivamente perto do seu objeto de estudo.
O Santo Reich
355 págs., R$ 60,00
de Richard Steigmann-Gall. Tradução de
Claudia Gerpe Duarte. Ed. Imago (r. da Quitanda, 52, 8º andar, CEP 20011-030, Rio de
Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2242-0627).
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