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A história dos prisioneiros na Alemanha e a resistência armada
de 1.140 judeus na 2ª Guerra são temas de dois estudos
A corda bamba do heroísmo
Marco Antonio Villa
especial para a Folha
A vasta literatura sobre a Segunda
Guerra foi acrescida de mais dois
livros: "A Última Fuga", de John
Nichol e Tony Rennell, e "Os Irmãos Bielski", de Peter Dufy. O primeiro
conta a história dos 300 mil prisioneiros de
guerra americanos e ingleses na Alemanha
nazista entre os anos de 1944-1945. Os aliados tinham invadido a Normandia e, no
leste, o Exército Vermelho vinha obtendo
sucessivas vitórias contra o Exército alemão. Os prisioneiros estão neste fogo cruzado: são deslocados de campo para campo de detenção e são mais de 200 -em
marchas forçadas com centenas de mortos, servindo como uma espécie de escudo
humano quando dos freqüentes bombardeios aliados na Alemanha e Polônia.
A imagem dos prisioneiros é muito diferente daquela consagrada pelo cinema. Ao
invés do americano de suéter que passa o
dia fazendo pilhérias, ironizando seus carcereiros e imaginando planos mirabolantes de fuga (quando não consegue cavar túneis enganando os "boches"), temos prisioneiros esqueléticos, mas que, mesmo
assim, são obrigados a realizar trabalhos
forçados, sempre ameaçados de fuzilamentos sumários. O desaparecimento de
um pão, por exemplo, foi pretexto para os
alemães aleatoriamente fuzilarem vários
prisioneiros. A barbárie terminou quando
o pão foi devolvido.
Fora do estereótipo
O prisioneiro
não se encaixa no estereótipo do herói militar: não morreu lutando e nem venceu o
inimigo. Acabou tendo de se render. As
histórias são diversas: um soldado perdido
do seu destacamento, outro que foi gravemente ferido ou um piloto que teve seu
avião abatido. Por paradoxal que seja, sobreviver rompe a aura dos "valores" da
guerra, onde só pode haver soldados vencedores e soldados mortos. Daí a dificuldade de readaptação que tiveram quando
voltaram aos EUA ou à Inglaterra e a resistência dos governos em considerá-los heróis. Sempre ficava no ar a pergunta: como
distinguir o soldado que foi aprisionado
lutando do que estava ferido ou daquele
que simplesmente, no primeiro combate,
acabou se entregando ao inimigo?
Quando os prisioneiros são libertados
pelo Exército Vermelho -a maioria deles
estava no leste da Alemanha, nos territórios ocupados pelos nazistas-, começa a
vingança. Saques de casas de alemães simplesmente por serem alemães, estupros,
enforcamentos, fuzilamentos a esmo. Um
soldado americano, irritado com o andar
de uma moça numa pequena cidade da
Alemanha, resolveu simplesmente abatê-la a sangue frio, em plena rua, com uma rajada de metralhadora.
A absoluta desorganização durante as
primeiras semanas após a libertação foi
marcada pela anarquia. Os ex-prisioneiros
queriam voltar o mais rápido possível para
seus países, mas não havia meios de retirá-los e nem interesse por parte das autoridades militares. Em um dos relatos, os soldados amotinados atacam um capelão militar que tentava organizá-los dentro das
normas disciplinares do Exército: teve de
fugir para escapar do linchamento.
Depois de sobreviver ao desafio diário
nos campos de prisioneiros, os soldados tiveram de se adaptar ao mundo em liberdade. E não foi fácil. Numa refeição, um ex-prisioneiro roubava comida e guardava no
bolso. Outro preferia armazenar velas e
fósforos. Assistir a um filme de humor nada representava: "Eu não podia compreender o filme nem porque as pessoas riam
tanto. Era tudo estranho para mim. Não
podia entrar no mundo da imaginação",
disse um deles.
O soldado americano que passou meses
imaginando como seria recebido por sua
mulher ao chegar a[o Estado de] Idaho,
após ter atravessado o país, foi surpreendido pela notícia de que ela queria o divórcio.
Como muitos ex-soldados, buscou consolo na bebida. Outro ex-prisioneiro não
conseguia, nas férias, viajar para lugar nenhum; tinha medo, não queria sair da Inglaterra. Quando foi receber os soldos atrasados, acabou tendo um desconto de 10%,
referente ao "Lagergeld", a moeda que circulava nos campos e que "pagava" o trabalho dos prisioneiros, como determinava a
Convenção de Genebra.
Guerra de guerrilhas
Já "Os Irmãos
Bielski" trata da resistência armada dos judeus de uma região de Belarus contra a dominação nazista, entre 1941 e 1944 -quando o Exército Vermelho retomou o controle da região, que passou a fazer parte da
União Soviética, até a sua desintegração.
O autor reconstruiu a saga da família
Bielski trabalhando com arquivos russos,
alemães, poloneses e de Belarus, além de
inúmeras entrevistas com participantes da
resistência. Os irmãos Bielski organizaram
o maior destacamento judaico do conflito
e, por meio de uma guerra de guerrilhas,
atacaram sistematicamente o Exército nazista. Ao mesmo tempo, fomentavam movimentos de resistência na área de sua influência, estimulando a fuga de judeus dos
campos de concentração para as florestas.
Arregimentaram 1.140 combatentes, travaram dezenas de combates, atacaram ferrovias e armazéns, enfraquecendo o domínio
alemão. Na contabilidade macabra da
guerra, para efeito de comparação, na resistência do gueto de Varsóvia morreram
16 soldados alemães; já a ação guerrilheira
dos irmãos Bielski abateu 381 soldados.
A ação do destacamento judaico nem
sempre foi fácil: se tinham de enfrentar um
poderio bélico infinitamente superior, ao
mesmo tempo conviviam com o anti-semitismo presente entre os oficiais do Exército Vermelho e as desconfianças por se
tratar de um grupo guerrilheiro autônomo. Apesar da heróica resistência, com o
término da guerra, a maioria dos guerrilheiros acabou migrando para a Europa
Ocidental, os EUA ou para a Palestina: na
União Soviética stalinista também não havia lugar para os judeus.
Marco Antonio Villa é historiador é professor do
departamento de ciências sociais na Universidade
Federal de São Carlos (SP). É autor de "Jango, um
Perfil (1945-1964)" (ed. Globo).
A Última Fuga
508 págs., R$ 65,00
de John Nichol e Tony Rennell. Trad. Alfredo
Barcelos Pinheiro de Lemos. Ed. Imago.
Os Irmãos Bielski
320 págs., R$ 46,00
de Peter Dufy. Trad. Marcos Padilha. Cia. das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).
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