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Em "Miramar" e "O Beco do Pilão", Naguib Mahfuz, Prêmio Nobel de
Literatura de 1988, traça um amplo painel da história do Egito contemporâneo
Dois romances de duas cidades
Milton Hatoum
especial para a Folha
Alexandria, jóia do Levante, é
considerada volúvel, sinuosa,
cosmopolita, lasciva. A cidade
do Cairo, por sua vez, é séria, intelectual, internacional, árabe e islâmica
(1). Essa oposição entre as cidades mais
importantes do Egito se ajusta, até certo
ponto, ao ambiente de dois romances de
Naguib Mahfuz: "Miramar" e "O Beco
do Pilão". O primeiro é ambientado em
Alexandria, o segundo, no Cairo. Ambos
partem de um espaço exíguo (uma pensão, um beco) para alcançar um sentido
mais amplo da história do Egito contemporâneo.
Romance da desilusão, marcado por
uma forte perspectiva histórica, "Miramar" (1967) é, ao mesmo tempo, uma
metáfora da sensualidade e da decadência de Alexandria, onde alguns personagens se encontram na pensão que dá título ao livro. Durante uma breve temporada na década de 1960, os hóspedes revelam anseios, temores, ambições, frustrações, paixões. Na verdade, é um encontro de cada personagem com o seu
passado, numa Alexandria úmida e invernal, onde todos se reúnem para ouvir
a voz da lendária cantora egípcia Umm
Khaltum.
É na oposição social e ideológica de
duas velhas figuras (o jornalista Amer
Wadgi e o ex-latifundiário Tolba Marzuq) que Mahfuz faz um recorte da história do Egito na primeira metade do século 20: da primeira revolução (1914-22)
-o fim do protetorado britânico, a posse do rei Fuad, o surgimento da Irmandade Muçulmana e do partido nacionalista Wafd- ao movimento nacionalista
de Nasser, que culminou na revolução de
julho de 1953. Nenhum personagem é
alheio à revolução nasserista, que, apesar
dos erros e desvios, da excessiva burocracia e da corrupção, marcou a passagem de um Egito arcaico a um país mais
moderno, com enormes desigualdades,
mas dotado de conquistas sociais e econômicas significativas.
No entanto não há laivos de ufanismo
nem glória neste romance. O descompasso entre os ideais revolucionários e a
dura realidade prevalece sobre as promessas do socialismo nasserista. As
"lembranças ambíguas" do velho jornalista Amer são irônicas, mas não cínicas,
e o que lhe resta no fim da vida é "um dilema particular, que nenhum partido ou
revolução pode resolver".
Amor e conveniência
Cada personagem representa uma origem de classe,
seus vínculos mais ou menos fortes com
a revolução e a burocracia. O fundo dramático dos mais jovens é a dificuldade da
entrega passional, a hesitação entre o
amor e as conveniências de um casamento mais seguro.
Sarham Al-Biheiri é um jovem economista que trabalha na Companhia Têxtil
de Alexandria, entusiasta da revolução,
membro da União Socialista, mas que se
enreda num esquema de corrupção e encontra um destino trágico. Mansur Bahi,
locutor de rádio e ex-comunista, tenta
reviver um relação amorosa com a mulher de um amigo e ex-mestre. Hosni
Allam, herdeiro de um latifúndio, sonha
em abrir um grande negócio, mas leva
uma vida besta de playboy, esbanjando
em clubes e cassinos ou participando de
orgias e bacanais.
Todos vivem uma crise existencial, debatendo-se entre uma vida alienada e os
compromissos com a revolução; e todos
se encantam com uma empregada da
pensão, Zohra, uma ex-camponesa, "a
rosa selvagem", "a menina exilada, solitária e desonrada", mas que mantém, em
sua simplicidade, coragem e autoconfiança, os valores de uma cultura antiga.
Filha da terra, bela e hierática, Zohra é o
centro do desejo dos três jovens personagens; sua beleza e força moral contrastam com a vida de Mariana, proprietária
da pensão decadente e viúva de um oficial britânico, morto em combate durante a guerra.
Poliedro na escuridão
Nesse romance, Mahfuz maneja com muita habilidade os jogos do tempo, alternando o
monólogo interior com situações no presente. No início, é como se os hóspedes
da pensão Miramar formassem um poliedro na escuridão; aos poucos, cada
personagem projeta uma luz na vida dos
outros, tornando-os mais complexos,
surpreendentes e imprevisíveis. Alguma
coisa permanece na penumbra, como lacunas ou dúvidas, dando à imaginação
do leitor o poder de preenchê-las.
"O Beco do Pilão" (1947) [que chega às
livrarias no próximo dia 25] foi escrito
depois dos romances históricos sobre o
antigo Egito e inaugura a fase realista de
Mahfuz, que inclui a trilogia do Cairo e
"Filhos do Nosso Bairro". Quase tudo o
que acontece no beco é também metáfora de muitos impasses e tragédias no Cairo durante a Segunda Guerra Mundial.
Mahfuz lança um olhar agudo sobre as
miudezas da vida dos personagens, desfiando pequenos dramas, frustrações e
amarguras. Nesse pequeno espaço do
Cairo, move-se uma pirâmide social onde cabem vários tipos de personagens
que se relacionam por meio de laços familiares, amizades, interesses e casos
amorosos. O que ressalta ao longo da
narrativa é a própria vida desses personagens e as relações entre eles.
Esses laços, com seus trançados de
eventos e conflitos, constituem a essência do romance, pois não há um enredo
bem delineado, uma trama que conduz a
um desfecho ou a um determinado fim.
Tradição e modernidade
O leitor
encontra um pouco de tudo nesse beco
povoado de muita miséria e pouco esplendor: empresários, jovens egípcios a
serviço do Exército britânico, empregados, padeiros, confeiteiros, barbeiros e
contadores de histórias. Algumas figuras
impressionam como certos pesadelos
das "Mil e Uma Noites".
Uma delas, Zaita, o terrível fazedor de
aleijados, sonha com uma humanidade
de mendigos mutilados; Umm Hamida,
historiadora e cronista do beco, é "uma
verdadeira enciclopédia de calamidades", capaz de fazer milagres em sua profissão de cafetina casamenteira. Numa
época turbulenta e repleta de tabus, a religião, a prostituição e a homossexualidade são abordadas frontalmente, como
na história de Kircha, o dono do café, ou
na de Abbas e Hamida, uma das mais comoventes do romance.
É no embate entre uma tradição arraigada e um vislumbre de modernidade
que "O Beco do Pilão" se situa. Numa cena liminar, o velho contador de histórias
é condenado ao silêncio pelo advento do
rádio, ameaçando uma tradição que, no
entanto, está no centro da obra do prosador egípcio.
Mahfuz faz de "Miramar" e de "O Beco
do Pilão" um mundo, e não falta ao grande escritor assunto para isso. Ele reaviva
os personagens acanalhados e oportunistas de Balzac, os seres sofridos de Zola, os apaixonados de D.H. Lawrence e
narra como um autor moderno, um verdadeiro precursor do gênero romanesco
na literatura árabe.
As traduções exemplares de Safa Abou
Chahla Jubran e Paulo Daniel Farah representam um passo importante para a
edição de outras obras literárias e filosóficas da cultura árabe, de que Naguib
Mahfuz é um dos representantes mais
consistentes e famosos.
Nota
"Cairo e Alexandria", em "Reflexões sobre o Exílio"
(Companhia das Letras), de Edward Said.
Milton Hatoum é escritor, autor dos romances
"Dois Irmãos" e "Relato de um Certo Oriente" (ambos pela Companhia das Letras).
Miramar
238 págs., R$ 35,00
de Naguib Mahfuz. Trad. Safa Abou Chahla Jubran. Ed. Berlendis & Vertecchia (r. Moacir Piza, 63, CEP 01421-030, SP, tel. 0/xx/ 11/3085-9583).
O Beco do Pilão
320 pág., R$ 49,00
de Naguib Mahfuz. Trad. Paulo Daniel Farah. Ed.
Planeta (r. Bernardino de Campos, 318, sala 53, CEP 04620-001, SP, tel. 0/xx/11/ 5543-7899).
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