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Ponto de fuga
Subterrâneos
Jorge Coli
especial para a Folha
Não existe outro lugar no mundo no qual as épocas
tenham se superposto tanto e deixado traços tão tangíveis. Em Roma, é como se fosse possível tocar com os
dedos a espessura do tempo. Da Antiguidade aos modernos, uma coisa se encaixa na outra.
O Palazzo Valentíni, no Renascimento habitação de
cardeais, foi construído em cima das pequenas termas
do imperador Trajano. Um milênio e meio separam as
duas construções, que chegaram a nós como um todo.
Hoje é um edifício administrativo. O município de Roma restaurou e transformou as velhas termas, que atravessaram os tempos como um porão abandonado do
palácio. Fez delas um lugar para mostras de arte, não
muito cômodo ou fácil, mas bastante estimulante.
Encontra-se agora, ali, uma exposição consagrada aos
últimos 20 anos de Mario Sironi, pintor morto em 1961
que participou do movimento futurista e que, como
tantos artistas e intelectuais italianos entre as duas guerras, aderiu ao fascismo. O curador é Vittorio Sgarbi,
personagem bem "a l'italiana", historiador da arte que
conseguiu projeção junto ao grande público graças a intervenções televisivas e leva de par uma carreira política
na Forza Italia, o partido de Berlusconi.
Quaisquer antipatias que se possam ter pelo curador
ou pela trajetória ideológica do artista, quaisquer restrições que possam suscitar os subterrâneos onde a exposição foi instalada, nada disso consegue diminuir o lirismo áspero de Sironi.
Confins - A irradiação cultural de uma obra determina
o impacto histórico de seu autor. A Itália engendrou,
desde Giotto, personalidades artísticas fora do comum,
que impuseram inflexões essenciais nas artes do Ocidente. Isso cessou no ocaso do século 18. Tiepolo e Canova foram os dois últimos nomes italianos solares, de
alcance internacional.
Depois, com as possíveis exceções do futurismo e,
quem sabe, de Morandi, a península como que se fechou sobre si: Modigliani, brilhante episódio do cosmopolitismo parisiense, não cabe nessa lista. Sironi demonstra, no entanto, que ausência de repercussão em
âmbito mais amplo, não indica forçosamente mediocridade. A obra de um artista pode ser fenomenal, como
no seu caso, e manter-se relativamente confinada, fora
dos grandes movimentos internacionais.
Como em tantos pintores italianos do século 20, permanece nele uma tradição figurativa sólida. A produção
de seus últimos anos talvez seja a mais profunda. O final
da guerra significou, para Sironi, o fim de certezas vigorosas e dos imensos projetos murais que realizara. Mas
a força permanece nas composições introspectivas, a
um tempo monumentais e angustiantes, nas imagens
de periferias desertas ou de montanhas alucinadas. Há,
contudo, magníficos projetos para cenários e costumes
de ópera, onde a grandeza retoma sua escala.
Cavernas - É provável que o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo possua uma das
melhores coleções de pintura italiana do século 20, fora
da Itália. Só de Sironi, tem meia dúzia. São esplêndidas.
O museu, no entanto, é exíguo, e a coleção permanece
sobretudo nas reservas.
Salto - As estátuas em bronze da Antiguidade que chegaram até nós são raras; ao longo dos séculos foram refundidas para que se reaproveitasse o metal. Os avanços
da arqueologia submarina vêm trazendo, nos últimos
anos, algumas obras-primas nessa liga. Depois dos
guerreiros de Riace, que se encontram entre as coisas
mais belas jamais fabricadas pela mão humana, é exposto, agora, outro achado recente, o "Sátiro Dançante", numa sala dos Museus Capitolinos, em Roma. É tão
sublime, que confirma a impressão reiterada pela história do Ocidente: só mesmo os antigos encontraram o segredo da beleza.
Disneyworld - Na Capela Sistina ou diante da Fontana
di Trevi, a multidão é asfixiante. Diante do "Sátiro", vagueiam seis ou oito pessoas. Na exposição Sironi, apenas duas. Os mitos da cultura se atrelaram ao turismo
para se tornarem, apenas, convenções.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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