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Um povo sem decência
DESPROVIDA DE VALORES, SOCIEDADE AMERICANA PERDEU O RESPEITO PELO OUTRO E SE TORNOU INSENSÍVEL AOS PROBLEMAS DOS DEMAIS PAÍSES DO GLOBO
KENNETH SERBIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A disputa presidencial McCain-Obama vai mergulhar
os EUA em um debate histórico e acalorado sobre segurança nacional. Enquanto os candidatos
irão se concentrar nas decisões
de política externa tomadas
pela elite, as políticas só irão
melhorar, porém, se eles enfocarem o debate na responsabilidade pessoal dos próprios
americanos pela segurança.
Os norte-americanos estão
desorientados.
Um claro exemplo do que está errado com a segurança nacional na base da sociedade
ocorreu em um recente concerto de rock ao ar livre do grupo The Police, em San Diego
[no final de maio]. O problema
se concentra nas noções de decência básica, coerência nas regras e regulamentos e respeito
à lei. Também tem muito a ver
com hipocrisia.
Eu e minha mulher, que é
mineira, somos fãs de Sting, o
líder do grupo The Police, em
parte por causa de sua dedicação à causa dos povos indígenas do Brasil. Em vez de uma
demonstração de solidariedade
do mesmo nível do talento e da
consciência social de Sting, no
entanto, presenciamos um
comportamento arrogante e irresponsável de muitos de nossos concidadãos.
Apesar da proibição de cadeiras no gramado, os seguranças permitiram que as pessoas
as levassem, mas exigiram que
fossem reclinadas de modo a
não obstruir a visão de outras
pessoas.
Mas muitos que chegaram
tarde ficaram de pé no gramado, bloqueando a visão dos que
estavam sentados.
Então os seguranças desdenharam de seu próprio regulamento sobre altura e não os
obrigaram a se sentar.
Mau exemplo
O cheiro de maconha enchia
o ar. Nenhum segurança impediu as pessoas de fumar. Vimos
apenas dois policiais, que não
detiveram ninguém por posse
de maconha. Nenhum agente
federal estava à procura de traficantes ou verificava se outras
drogas ilícitas circulavam entre
o público.
A cena contrastou acentuadamente com uma recente
blitz contra estudantes usuários de drogas e traficantes em
uma universidade pública local
[a Universidade Estadual de
San Diego, no início de maio].
Esse incidente, ocorrido depois de duas overdoses fatais
sofridas por estudantes, revelou a variedade de substâncias
ilegais disponíveis para compra
nos EUA: cocaína, maconha,
óleo de haxixe, pílulas de ecstasy, cogumelos alucinógenos,
metanfetamina e remédios por
receita usados ilicitamente.
Perguntei-me por que não se
aplica o mesmo rigor ao público
dos concertos e às operações
criminosas que o abastecem.
Parte da resposta está no fato
de que o público tinha entre 40
e 60 anos. Enquanto muitos
dessa geração contribuíram para a justiça social, muitos outros nesse grupo mais privilegiado da história se sentem
com direito a tudo, inclusive a
desrespeitar os outros e a lei.
Essa geração trouxe para os
EUA a cultura da droga e hoje é
um mau exemplo para a juventude. Os organizadores de
shows querem o dinheiro dessa
geração, e por isso a segurança
nos concertos é frouxa.
O governo americano gasta
bilhões combatendo as drogas
no exterior, mas em casa tanto
os cidadãos quanto a polícia ignoram o consumo individual.
Uma sociedade sem decência
comum e sem vontade para
atacar o tráfico de drogas enfrenta uma séria ameaça à sua
segurança interna.
Não são questões abstratas.
Os usuários de drogas ilegais
dão lucro para as organizações
criminosas internacionais e
ameaçam a linha de frente da
segurança nacional: a educação
das crianças.
Crise cultural
Como muitos americanos
não têm mais valores, a cultura
dos EUA está em crise. Essa crise revelou uma clara fraqueza
social que deriva de arrogância,
complacência e insensibilidade
e permitiu que Osama bin Laden atacasse o país com a mais
facilidade.
Essa mesma cultura exige
um alto padrão de vida à custa
dos outros e é a mesma que assumiu hipotecas altamente duvidosas a juros baixos e, depois,
ficou indignada quando o chão
sumiu. As soluções arranjadas
por políticos irresponsáveis só
vão exacerbar a crise cultural.
Os norte-americanos adoram carros obscenamente
grandes, que bebem muito
combustível, e depois se indignam com os altos preços da gasolina enquanto permanecem
alheios ao fato de que o resto do
mundo sempre pagou preços
mais altos e dirigiu carros mais
econômicos.
Com o poder do dólar, os
EUA financiam imprudentemente sua dívida recorrendo
cada vez mais a governos e investidores estrangeiros enquanto compram produtos baratos feitos por trabalhadores
em países com salários absurdamente baixos e condições de
trabalho arriscadas.
Os americanos não conseguem enxergar como o seu
comportamento mina a segurança nacional.
As civilizações declinam tanto por causa de fatores externos
quanto internos.
Nos EUA os fatores internos
parecem estar se acelerando
em um ritmo estonteante. A
cultura insensibilizou as pessoas para si mesmas e para seus
vizinhos, aqui e em outras partes do mundo, e assim aumentou a vulnerabilidade do país.
Somente uma mudança de
atitude pode solucionar esta
crise. Para começar a mudança,
Obama e McCain devem discutir a posição dos EUA no mundo não com frases padronizadas sobre o terrorismo, a força
dos EUA e o apoio às tropas,
mas reconhecendo que a verdadeira liderança mundial envolve uma dose de autocrítica e
consciência sobre o impacto
das ações individuais nos assuntos mundiais.
A questão é se os candidatos
têm coragem para pedir que os
norte-americanos se olhem no
espelho.
KENNETH SERBIN é professor de história na
Universidade de San Diego (EUA). No mês que
vem publica "Padres, Celibato e Conflito Social
-Uma História da Igreja Católica no Brasil", pela
Companhia das Letras.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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